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3.2 - A ATITUDE CIENTÍFICA


Na cognição, adota-se uma atitude científica se os seguintes requisitos forem satisfeitos:

1 Ter hipóteses de trabalho, e não ter crenças.
2 Mantém-se uma curiosidade constante, isto é, procura-se sempre conhecer coisas e ideias novas. Se um fenômeno é observado e não compreendido, deve-se observá-lo de todos os ângulos possíveis e estudá-lo a fim de compreendê-lo. Se uma ideia não é compreendida, ou parecer estranha, deve-se fazer um esforço para estudá-la e compreendê-la.
Essa atitude significa que se deve ter um interesse por quaisquer tipos de fenômenos ou de teorias.
Um contra-exemplo a essa atitude é o fato de muito poucas pessoas saberem por que os aviões sustentam-se no ar, apesar de os verem com frequência. A compreensão desse fenômeno, devido a uma propriedade dos fluidos descoberta em 1738 por Daniel Bernoulli (1700-1782), é relativamente simples e pode ser demonstrada com imensa facilidade: basta assoprar por sobre uma folha de papel fino com a borda superior esticada entre as mãos e encostada abaixo do lábio inferior, e observar como a folha sobe.
Há muito tenho afirmado que a falta dessa curiosidade constante pode ter um efeito indesejável: o desenvolvimento de uma paralisia mental. Segundo Platão, em Menon, Sócrates vai mais longe, pois diz: "Eu disse algumas coisas sobre as quais não tenho total confiança. Mas há algo pelo qual estou pronto a lutar, em palavras e ações, até o máximo de minha capacidade: Nós seremos melhores, mais corajosos e menos impotentes se pensarmos que devemos indagar, do que seríamos se cedêssemos à inútil fantasia [indulge in the idle fancy] de que não é possível, e não há utilidade, em saber o que não sabemos." [PLA, p. 183.]
3 Procura-se observar objetivamente o mundo, isto é, a observação deve ater-se exclusivamente ao fenômeno; nenhum aspecto observado deve ser desprezado e a observação não deve depender de hipóteses anteriores.
Essa ação é caracterizada por uma total abertura tanto para fenômenos exteriores quanto interiores ao observador.
4 Procura-se compreender objetiva e conceitualmente o mundo, em especial os seres vivos e o ser humano.
5 Não se usam sentimentos como base de observações e formulação de conceitos a respeito dos objetos observados ou teorias estudadas.
Este requisito é consequência dos requisitos 3.3 e 3.4, e é devido ao fato de que os sentimentos são puramente subjetivos. De fato, cada pessoa tem seus sentimentos e uma outra pessoa não pode sentir os sentimentos da primeira; o que ela pode fazer é reconhecê-los, por exemplo percebendo que essa primeira pessoa está alegre ou está triste. No entanto, é impossível sentir a alegria ou tristeza que ela está sentindo.
Um exemplo do uso indevido de sentimentos na aquisição de conhecimentos seria usar a simpatia ou antipatia por uma pessoa para tirar conclusões sobre ela. É interessante notar que, quando uma pessoa tem um sentimento sobre algo, esse sentimento revela muito mais sobre essa própria pessoa do que sobre o objeto em questão. Por exemplo, uma antipatia por uma pessoa pode ser o resultado de seu rosto ser parecido com o de uma outra pessoa que fez uma ação desagradável ao observador. Um outro exemplo seria observar e estudar algum fenômeno ou objeto devido a uma simpatia com relação a eles, evitando-se estudar outros com os quais se antipatiza.
Note-se o uso da palavra "base" na formulação da presente atitude. Ter uma atitude científica não significa ignorar os sentimentos, mas eles não devem ser usados tanto para orientar a curiosidade e a pesquisa, quanto na conceituação dos fenômenos. Sentimentos devem ser conscientizados e levados em conta sempre que se fizer um julgamento, pois é impossível ter-se um conhecimento total sobre algo da realidade (conhecimento total só existe na Matemática, em áreas bem definidas; note-se que existem problemas matemáticos bem formulados que não têm solução). Por exemplo, se há duas teorias coerentes conflitantes sobre um mesmo assunto, e não há evidências de qual se adapta melhor à realidade, pode-se usar um sentimento de simpatia por uma delas para adotá-la provisoriamente; mas essa razão da adoção deve ser conscientizada.
Por outro lado, há sentimentos essenciais em uma atividade científica, como por exemplo o entusiasmo que se deve ter por descobrir coisas novas e obter mais conhecimento. Certos sentimentos também deveriam ser usados na escolha da pesquisa e na divulgação dos resultados. Por exemplo, um certo crivo moral poderia impedir um veterinário de sacrificar animais em suas pesquisas, ou um biólogo de usar células-tronco de embriões humanos, se for necessário matar esses embriões; se foi feita alguma descoberta que pode representar um perigo ecológico ou humano, talvez o pesquisador, baseado em seus sentimentos, decida não divulgá-los (o que lembra a excelente peça de F. Dürrenmat, Die Physiker, "Os Físicos", escrita em 1961, considerada sua melhor peça [DÜR; ver também http://en.wikipedia.org/wiki/Die_Physiker]).
6 A descrição de fenômenos e a formulação de conceitos e teorias devem ser dirigidas exclusivamente para a compreensão e serem universais.
Este pré-requisito é uma consequência do anterior. Um contra-exemplo seria transmitir conceitos entusiasticamente, tentando influenciar os sentimentos do receptor para que este se convença da validade dos argumentos. Espero que os leitores de meus artigos e livros percebam que neles procuro dirigir-me exclusivamente à compreensão, e não aos sentimentos de quem os lê.
7 Não ter absolutamente nenhum preconceito, em qualquer área de conhecimento, isto é, estar-se sempre disposto a verificar qualquer fato ou fenômeno, ou estudar qualquer teoria.
Por exemplo, se alguém diz "O prédio Martinelli [o edifício alto mais antigo da cidade de São Paulo] ruiu", uma atitude científica seria dizer: "Isso parece muito estranho, pois ele estava lá desde 1929, mas vou investigar para confirmar." Uma atitude não-científica, seria dizer: "Isso é bobagem, ele está lá desde 1929, nunca ruiu e nem vou me importar com isso." Note-se como um preconceito encerra a pesquisa.
Um outro exemplo é a teoria das cores de Newton [NEW]. Nela, ele claramente parte da ideia preconcebida de que a "luz branca" é composta das cores do arco-íris, e monta suas experiências para comprovar essa sua teoria. Por isso é que usou uma abertura particular em sua janela, e uma certa distância do prisma ao anteparo, criando com isso um feixe de luz cuja dispersão produzisse as cores do arco-iris: "[...] at a round hole, about one third Part of an Inch broad made in the Shut of a Window. (sic)" [NEW, p. 26 (Prop. II, Theor. II, Exper. 3).] Se o feixe tivesse sido muito fino, ou o anteparo muito distante do prisma, apareceriam apenas três cores (vermelho, verde e violeta), e se fosse de diâmetro muito grande ou o anteparo colocado mais próximo apareceria uma parte branca em lugar do verde. Este, como se pode observar claramente afastando-se gradualmente o anteparo do prisma, resulta da superposição do amarelo com o azul. Recomendo ao leitor observar pessoalmente tudo isso: basta tomar dois papéis pretos e colocá-los sobre um papel branco, olhando a faixa branca assim formada através de um prisma cujo eixo deve ser paralelo a essa faixa. Para alterar a largura da faixa branca, pode-se mover um dos papéis pretos. Aproveite-se para repetir a experiência com dois papéis brancos sobre um dos pretos, formando uma fenda preta; ver-se-á o "espectro complementar", segundo a teoria das cores de Goethe. Nessa teoria, ele faz questão de não partir dessa ideia preconcebida de Newton [GOE, Vol. 3, p. 48: Der Newtonsche Optik – Erstes Buch, Erster Teil (A Óptica de Newton – vol. 1, parte 1), Props. 86-93; ver também ZAJ, p. 209; SEP, p. 142]. É interessante citar o físico Tolger Holtsmark: "Newton pensou ter explicado a existência do espectro por meio de um modelo físico da luz, ao passo que ele de fato usou a imagem do espectro para explicar um possível modelo físico da luz" [HOL T, p. 1235.]
Este requisito complementa o 3.
8 A visão conceitual de mundo adotada é coerente; se pontos logicamente conflitantes são conhecidos, procura-se investigá-los para resolver os conflitos.
9 Há interesse permanente por opiniões contrárias às próprias, especialmente se elas são bem fundamentadas.
Opiniões contrárias podem servir para se mudarem hipóteses de trabalho (cf. 3.1); elas devem servir pelo menos para se testar as próprias hipóteses e teorias e, eventualmente, colher mais argumentos em favor destas últimas.
10 A observação de fenômenos e a descrição conceitual dos mesmos deve sempre ser feita em plena consciência de vigília; o observador deve manter permanentemente a sua auto-consciência e a sua individualidade.
Contra-exemplos a essa característica são o uso de imagens obtidas em sonhos como se fossem conceitos, e de transmissões mediúnicas. No primeiro caso, as imagens dos sonhos, em lugar de serem tomadas literalmente, podem inspirar uma conceituação, como foi a conhecida vivência de F.A. Kekulé, que em 1865 sonhou com uma cobra mordendo seu rabo, inspirando-o a descobrir a forma do anel de átomos de carbono do benzeno. No segundo caso, há duas possibilidades a considerar: o médium está inconsciente ou está consciente durante suas observações ou transmissões. A primeira situação choca-se diretamente com o requisito em questão. Um caso da segunda situação é a psicografia: claramente, o médium que a faz não está expressando sua individualidade, pois transmite conhecimentos que não possui e usa um estilo de redação que não é o seu; sua individualidade é como que substituída nessa atividade.
Somente com a preservação deste pré-requisito é que se pode garantir que não há erro nas observações e na descrição de fenômenos e de conceitos. Uma das mais conhecidas máximas de Goethe, que infelizmente não é geralmente reconhecido como um grande cientista, apesar de suas contribuições científicas e de ter introduzido um método científico efetivo, é: "Nossos sentidos não enganam, o julgamento engana ("Die Sinne trügen nicht, das Urteil trügt" [in Maximen und Reflexionen, No. 527]). Quando o observador está consciente ao fazer suas observações, ele pode reconhecer que seus sentidos não estão sendo suficientemente acurados, ou o aparelho usado em medições tem limitações, ou reconhecer que, eventualmente, há diferentes julgamentos que podem ser feitos a partir de uma mesma observação.
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Quando uma atitude é contrária a algum desses requisitos, denominá-la-ei de "atitude anti-científica".
É fundamental reconhecer que a atitude científica como caracterizada aqui não engloba toda a atividade humana, pois nem toda ela é cognitiva. De fato, existem pelo menos outras duas: as atitudes artística e social. Vou discorrer muito brevemente sobre ambas, pois o assunto foge ao escopo deste artigo.
Nessas duas atitudes, os sentimentos adquirem fundamental importância, contrariamente ao requisito 5. Além disso, o aspecto individual, subjetivo, é absolutamente essencial nas duas. De fato, o artista deve obrigatoriamente colocar em sua obra sua particular maneira de expressar algo objetivo ou subjetivo, contrariamente à atitude científica, que deve levar a algo universal e ser expressa universalmente. Em outras palavras, um objeto de arte é algo objetivo e universal, e o que ele expressa também pode ser universal, mas a maneira como essa expressão é manifestada deve ter algum elemento subjetivo da individualidade do artista e depender da individualidade do observador (para mais detalhes, veja-se meu artigo "O computador como instrumento de anti-arte"). Por exemplo, um pintor pode representar a fome ou o medo de uma maneira, um outro de outra maneira distinta, o que é bem nítido na pintura expressionista. É interessante notar que qualquer obra de arte deve necessariamente tocar os sentimentos do observador, isto é, a subjetividade dele é parte essencial; o contrário se passa com uma obra científica. Uma obra que é fruto apenas de conceituação objetiva, e o meio de expressão é universal, independendo da interpretação do observador, não é uma obra de arte, e sim de ciência. A ciência tem como objetivo primário a produção de conceitos para a compreensão do mundo; por outro lado, o objetivo primário da arte é a produção de objetos que devem ser captados com os sentidos, provocando alguma sensação ou sentimento. Nessa linha, é interessante notar que a arquitetura é a arte mais objetiva, e a poesia a mais subjetiva.
A atitude social também difere da atitude científica pois a primeira envolve necessariamente ações sobre indivíduos e sua subjetividade. Se estes pudessem ser tratados objetivamente, os economistas sempre teriam sucesso em suas teorias e práticas. Uma das atitudes sociais mais importantes é a compaixão, isto é, sofrer com o sofrimento de outrem. Ela não é derivada de modo algum de uma atitude científica. A "inteligência emocional" de Daniel Goleman [GOL], de importância social fundamental, inclusive profissionalmente, também não é fruto de uma atitude científica, e sim de uma atitude social.

Para meditar