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4 - MATERIALISMO


Vou caracterizar materialismo como a visão de mundo que admite apenas a existência de fenômenos físicos no universo. Segundo ela, o mundo é constituído apenas de matéria e energia físicas, e os fenômenos que se passam com elas têm causas exclusivamente físicas.
Há dois tipos de materialismo. Denominarei o primeiro de materialismo científico, caracterizado por adotar aquela visão de mundo dentro de uma atitude estritamente científica, como caracterizada no item 3. Chamarei o segundo de materialismo-crença, que é a crença naquela visão de mundo e, portanto, não segue uma atitude científica, especialmente as características 3.1 (já que envolve alguma crença), 3.2 (no sentido de não se ter curiosidade sobre a possibilidade de existência de fenômenos não-físicos) e 3.7 (no sentido de que há uma ideia preconcebida de que só existem fenômenos físicos no universo).
A diferença mais típica entre os dois consiste em que um materialista científico deve estar aberto e se interessar por visões de mundo não-materialistas, estando disposto a rever sua posição se for convencido de que existem fenômenos não-físicos. Por outro lado, um materialista-crente toma sua visão de mundo como dogma, e não está aberto a visões de mundo que admitem a existência de fenômenos não-físicos: tipicamente, ele não só não procura saber como são essas outras visões, como evita entrar em contato com qualquer visão que não seja materialista.
Por exemplo, um materialista-crente diz: "É óbvio que nosso pensamento é gerado pelo nosso cérebro, como poderia ser diferente?" ou "É óbvio que a evolução darwinista é uma realidade, como poderia ser diferente?" Por outro lado, um materialista científico diria: "Segundo minha concepção de mundo, o pensamento é gerado pelo cérebro, mas como não sabemos exatamente como é esse processo, estou aberto a outras explicações, independentemente de que conceitos e experiências elas usam. Quem sabe elas podem apresentar um edifício teórico coerente e abrangente, e aí mudarei minhas hipóteses fundamentais." O mesmo para a evolução darwinista. Isto é, o materialista científico toma essas duas concepções como teorias (o que realmente são), e não como realidades ou dogmas, como muitas vezes é o caso com materialistas-crentes.
Denominei o primeiro tipo de "científico" por uma simples razão: um cientista, por necessariamente adotar a atitude científica descrita no item 3, não deveria ter preconceitos e deveria ter uma abertura total a tudo. Uma das atitudes mais frequentes dos materialistas-crentes é terem um total preconceito contra qualquer explicação que não seja baseada em fenômenos puramente físicos, que eles também chamam de "naturais". É muito comum eles negarem-se a estudar qualquer teoria que envolva processos não-físicos, e a examinar evidências desses processos. É também muito típico eles ridicularizarem qualquer teoria ou visão de mundo que use fenômenos não-físicos em suas explicações, como foram os casos de Freud e de Bertrand Russel e, mais recentemente, Richard Dawkins.
Obviamente, existem variações do materialismo-crença: um materialista pode adotar uma atitude científica em relação a certos fenômenos, e uma atitude de crente frente a outros. Por outro lado, existe um único tipo de materialismo científico, pois se uma pessoa o adota, não pode ter nenhuma crença.
É muito importante considerar o seguinte: o que caracteriza uma pessoa como materialista, de qualquer matiz, é a maneira como ela pensa. Uma pessoa pode falar frequentemente de Deus (independente do que compreende ou não compreende com essa palavra), mas se sua maneira de pensar é materialista, isto é, procura e usa somente causas físicas para os fenômenos, aplicados exclusivamente a objetos e forças físicas, é dessa maneira que deveria ser classificada.
Muitas pessoas – ou talvez todas – que se dizem "ateus" são na realidade materialistas, em geral do tipo crente. Essa denominação de "ateu" tem muitos problemas. O Aurélio Eletrônico Séc. XXI define-a como "Diz-se daquele que não crê em Deus ou nos deuses; ...", isto é, ela parte de Deus ou de deuses. Portanto, um ateu terá que explicar inicialmente o que é Deus ou o que são os deuses, para depois dizer que não acredita neles. Se ele disser que acredita que amanhã não vai chover, parte do princípio de que se entende o que é "amanhã" e o que é "chover". Mas o que ele próprio entende por Deus ou por deuses? O ateu teria que caracterizar precisamente essas entidades, e sua atuação, para que se possa discutir a sua existência ou não. Note-se que é possível descrever claramente algo fisicamente impossível, como por exemplo um castelo que flutue no ar. Além disso, claramente aquelas entidades não são físicas. No entanto, qualquer materialista não admite a existência de algo ou de processos não-físicos; nesse caso, como é que vai caracterizar algo não-físico, para que se possa discutir esse algo com ele? Voltarei ao problema do conceito de Deus no item 8, em relação ao monoteísmo de várias religiões.
Dawkins denomina-se ateu, algo que prevalece em todo seu livro [DAW b]. Mas ele é claramente alguém com mais do que com uma simples falta de crença em Deus, seja lá o que essa entidade for: ele não pode assumir a existência de nenhum processo não-físico, isto é, ele é na realidade um materialista.
Várias pessoas dizem-se "céticas" quando, na realidade, são materialistas. O mesmo Aurélio traz, para cé(p)tico: "Que duvida de tudo; descrente." Ora, pois! Se o cético duvida de tudo, ele necessariamente duvida da própria existência (que é admitida de maneira ingênua por todos que o conhecem). Nesse caso, ele seria pelo menos um esquizóide, senão tiver problemas psicológicos muito mais graves. Tenho a impressão de que uma pessoa declara-se cética para indicar que não acredita em nada que seja não-físico; nesse caso, a minha denominação de "materialista" caracteriza muito melhor essa pessoa. Aliás, esse "acredita" classifica-a como materialista-crente, segundo minha caracterização no fim do item 2.
Muitos céticos são materialistas-crentes. Um exemplo desses parece ser Michael Shermer, que escreve a coluna permanente Skeptic da revista Scientific American, e é editor de Skeptic – ver em http://www.skeptic.com. Nesse site, na seção Discover Skepticism afirma-se (minha tradução): "O ceticismo moderno está incorporado no método científico, que envolve coletar dados para formular e testar explicações naturalistas para fenômenos naturais." Assim, excluem-se todos os fenômenos não-naturais, isto é, não-físicos, e se recusa examiná-los com seriedade. Portanto, para Shermer a ciência é materialista-crente, pois só admite explicações materiais e fecha-se às não-materiais.
O positivismo de Auguste Comte (1798–1857), baseava-se na experiência física (herança dos empiristas como Hume e Berkeley) e refutava qualquer metafísica (além da Lógica e da Matemática, classificadas como "ciências formais puras"). Assim, ele também foi um materialista que, por sinal, teve grandes influências no pensamento de muitos intelectuais brasileiros.
Parece-me que a minha denominação de "materialista" caracteriza melhor uma pessoa do que classificá-la como ateu, cético, ou positivista.
Para o restante deste artigo, é fundamental reconhecer-se que um materialismo coerente deve: a) limitar a individualidade humana somente à hereditariedade e à influência passada do meio ambiente; b) negar o livre arbítrio; c) negar a responsabilidade individual e coletiva; d) negar a existência de moral; e) negar a possibilidade de uma ação ser devida a um amor altruísta; f) negar um sentido para o universo e a vida humana. Vou justificar essas minhas afirmações.
a) A questão da individualidade é trivial: se o ser humano é só matéria, não pode haver outro componente na individualidade que não seja devida à hereditariedade e ao meio ambiente.
b) Considero como livre arbítrio, ou a liberdade de se fazer conscientemente ações interiores (como pensar) ou exteriores (executar alguma ação para fora, como atuar com as mãos e pés, movimentar-se ou falar), a possibilidade de um ser humano executar uma ação sem que haja nenhuma imposição interior ou exterior para isso. A imposição exterior é clara: forçar-se, tanto física como emocionalmente, alguma pessoa a executar algo. Um exemplo do segundo caso é forçar-se alguém a uma ação pondo-se-lhe medo de que algo ocorra consigo se não a executar; um outro exemplo é forçar, por meio de condicionamento com propaganda, uma pessoa a executar uma certa ação, como comer ou comprar algo. Um exemplo de uma imposição interior é agir-se segundo um sentimento, como não falar com uma pessoa que, à primeira vista, parece ser antipática.
Uma ação é executada em liberdade se existem outra ações possíveis, e a escolha da primeira é feita em plena consciência, examinando-se mentalmente quais seriam as consequências da execução de cada ação. Isso não exclui a execução de uma ação baseada em um sentimento, como seria o caso de uma pessoa que está fazendo um regime para emagrecer mas, em um dia de calor, resolve conscientemente quebrar o regime para saborear um bom sorvete.
O materialismo tem que forçosamente negar o livre arbítrio pois da matéria não pode advir liberdade: ela está sempre sujeita às "leis" e condições físicas. Aqui há duas possibilidades. Pode haver um determinismo, isto é, dado o estado de um corpo e certas condições em seu meio ambiente, ele sempre sofrerá a mesma transformação. Um exemplo famoso de pessoa que era 100% determinista, isto é, totalmente contra o acaso, foi Einstein, seguindo a filosofia de Baruch Spinoza, (ver, por exemplo, o excelente [ISA, pp. 102, 335] e também [JAM, pp. 37, 69-71]).
A outra possibilidade é a existência da aleatoriedade ou acaso, isto é, dadas certas condições iniciais, a matéria pode comportar-se de várias maneiras possíveis, sem que haja uma causa para a tomada de alguma dessas variantes. O acaso é a base da Mecânica Quântica, que tem um enorme sucesso experimental, mas que transformou o mundo atômico em algo incompreensível. Se um ser humano executa uma ação aleatoriamente, não age em liberdade, pois essa ação não se deveu a um ato consciente.
Um velho raciocínio pode ajudar a esclarecer melhor essa questão da liberdade não poder resultar da matéria. Um átomo obviamente não tem liberdade. Portanto, uma molécula, formada por um grupo de átomos, também não pode ter liberdade. Uma célula, formada por um grupo de moléculas, idem. Um grupo de células, formando um órgão, ibidem. Finalmente, um grupo de órgãos formando um ser humano também não pode ter liberdade. Essa é uma das razões para cientistas e materialistas coerentes negarem a possibilidade do livre arbítrio, que consideram uma ilusão. Einstein foi absolutamente categórico a esse respeito; em suas palavras, "Sou determinista. Não acredito no livre-arbítrio." [ISA, p. 397]; "Não acredito, em absoluto, no livre-arbítrio no sentido filosófico. Cada pessoa age não só sob pressão das compulsões externas, mas também de acordo com as necessidades internas." [p. 401]; "Os seres humanos, em seus pensamentos, sentimentos e atos, não são livres, mas estão presos pela causalidade do mesmo modo que as estrelas em seus movimentos." [p. 401.] Quanto à ilusão do livre-arbítrio, ele disse: "Sou compelido a agir como se existisse o livre-arbítrio já que, se desejo viver numa sociedade civilizada devo agir de modo responsável." [p. 403.]
c) É óbvio que, sem liberdade, não há responsabilidade pessoal ou coletiva. Einstein negava-a, por achar que cada ação de um ser humano é consequência do seu estado e do estado do meio ambiente: "Sei que, filosoficamente, um assassino não é responsável por seu crime, mas prefiro não tomar chá com ele." [p. 403.] A propósito, ele não era coerente nesse e em outros aspectos filosóficos pois, depois que soube, em 1941, das atrocidades perpetradas pelos nazistas nos campos de concentração e extermínio, jogou a responsabilidade disso não só sobre eles, mas sobre todo o povo alemão: "Os alemães, como nação inteira, são responsáveis por esses assassinatos em massa e devem ser punidos como um povo." [ISA, p. 514, JAM, p. 71.] Aliás, é raro encontrar um materialista realmente coerente pois, por exemplo, muitos admitem a liberdade humana, já que prezam pelo menos a liberdade intelectual; além disso, o conceito de liberdade arraigou-se na humanidade profundamente desde o século XIX. É possível que o inconsciente dessas pessoas seja mais sábio do que seu consciente; devido ao primeiro, elas têm uma intuição de que o ser humano pode ter livre-arbítrio, e não percebem que isso contraria sua visão materialista.
d) Sem responsabilidade, não há moral. Nesse sentido, é necessário distinguir claramente "moral" de "ética". Esta última refere-se a normas estabelecidas por um grupo, em geral profissional. Por exemplo, é ético um advogado defender e tentar convencer outras pessoas (um júri, por exemplo) da inocência de uma pessoa a qual ele está plenamente convencido de ter cometido um assassinato; mas não considero essa uma ação moral. Nesse caso, uma ação moral seria esse advogado reconhecer publicamente a culpabilidade do réu, mas mostrar objetivamente ao júri eventuais atenuantes do caso.
e) Um ato é fruto de um amor altruísta se ele beneficia algo ou alguém, é executado em plena consciência e liberdade, e não traz nenhum benefício para a pessoa que o executa. Portanto, também o amor altruísta não faz sentido do ponto de vista materialista. Desse ponto de vista, só fazem sentido ações egoístas ou movidas pela ambição. A esse respeito, vale a pena notar que a teoria darwinista da evolução é baseada no egoísmo: a luta pela sobrevivência do indivíduo e da espécie, não importando o que acontece com outros indivíduos ou espécies. Estou ciente de que Darwin formulou uma teoria especulativa tentando explicar o altruísmo: uma pessoa altruísta é melhor aceita pela comunidade e assim tem mais chance de sobreviver e deixar uma prole. É realmente estranho que o altruísmo derive de um egoísmo! Mas Richard Dawkins expressou muito bem o ponto de vista materialista: em sua especulação, o egoísmo é inerente ao ser humano, e está em seus próprios genes, como se estes pudessem ter consciência [DAW a]. Da ciência materialista moderna não se chega ao altruísmo.
É interessante notar que muitos cientistas são idealistas, e têm grande satisfação em suas atividades pois sentem que assim ajudam altruisticamente a humanidade. Apesar de isso ser muito positivo, trata-se no fundo de uma incoerência da parte deles quando são materialistas (o que acontece com a maioria deles, senão com a quase totalidade), pois esse sentimento choca-se com a falta de sentido do altruísmo do ponto de vista material.
f) Da matéria não pode resultar algum sentido para o universo e a para a vida humana, pois eles são frutos do acaso. Por exemplo, na seleção natural darwinista predomina o mais apto, mas ele tem essa característica por acaso, devido a mutações genéticas aleatórias (segundo o neo-darwinismo), devido a combinações aleatórias de genes dos pais e encontros casuais com outros indivíduos, onde ele pode predominar. Curiosamente, Dawkins repetidamente escreve que a seleção natural elimina o acaso [DAW b, pp. 141, 145]. No caso do ser humano, uma visão materialista deve necessariamente admitir que o nascimento (ou melhor, a concepção) e a morte são acasos. Portando, desse ponto de vista a vida humana não tem sentido: ela simplesmente existe; daí, por exemplo, o existencialismo de Sartre. O desenvolvimento do universo, do sistema solar, e da Terra, o aparecimento da vida e a evolução dos seres vivos também são basicamente devidos a acasos. Assim, o universo inteiro não tem sentido.
Muitos materialistas convictos têm dificuldade em compreender o que poderia significar um sentido para a vida, o que é perfeitamente compreensível, pois da matéria e das forças físicas não se pode chegar a ele.
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Estamos na era do materialismo. Uma pessoa que é materialista está totalmente de acordo com a maneira atual de ser da humanidade. De fato, pode-se tratar a história da humanidade como a "queda" na matéria e no materialismo. A maravilhosa imagem bíblica do Paraíso [Gen 2:8] representa um período inicial em que o ser humano não tinha conhecimento e auto-consciência: ainda não havia "comido" da "arvore do conhecimento do bem e do mal" [2:17], ainda não reconhecia que estava "nu" [3:7]. Sua "expulsão" dele pode ser considerada como um símbolo para aquela queda. (A propósito, nesse sentido as expressões "Tentação" e "Pecado Original" não fazem sentido, pois só se pode cometer um erro se for possível fazer uma escolha, o que exige consciência e conhecimento.) Foi necessário à humanidade passar por essa "queda", pois é somente graças à nossa imersão e atuação na matéria que podemos cometer erros e portanto sermos livres: se fôssemos inconscientes, ou se só houvesse o bem, não poderíamos escolher e portanto não seríamos livres. A nossa auto-consciência e individualidade superior (conforme vou caracterizá-la no próximo item) também foram desenvolvidas devido a essa "queda" na matéria. No entanto, estamos na época em que essa fase do materialismo deve ser ultrapassada, porém sem perder tudo o que foi conquistado em termos de atitude científica, consciência, conhecimento, liberdade e individualidade. Vejamos o caminho que penso deve ser seguido.

Apesar de não se saber cientificamente o que é matéria, temos uma noção intuitiva da mesma, pois defrontamo-nos com ela por meio de nossos sentidos. Temos também uma noção intuitiva de energia, pois qualquer ação física que fazemos exige um certo esforço, denominado comumente de "trabalho" na Física.

prossegue em 5 - ESPIRITUALISMO