Mostrando postagens com marcador A Morte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador A Morte. Mostrar todas as postagens

22_08

A MORTE É UM PROCESSO

 

A morte é um processo

Todo ser vivo morre, e o processo merece respeito e reverência


 O veterinário veio em casa dar assistência ao Neguinho, o vira-lata de longos pelos cinzas que meus pais resgataram das ruas dez anos atrás. Na minha visita anterior, Neguinho já estava cheio de tumores e com dificuldade para se levantar sozinho, mas ainda andava, ia sozinho tomar sol em seu canto favorito no gramado, e vinha ficar sob a mesa onde sentávamos para jogar cartas e bater papo —de onde só levantava de novo com ajuda da técnica que meu pai desenvolveu sob medida para ele.

Mas desta vez, Neguinho não se levantava mais. Nem para fazer cocô ou xixi. Bebia água e comia algo se colocado em sua frente. O veterinário colheu sangue e deu o diagnóstico: insuficiência renal e hepática. Neguinho foi internado no dia seguinte para uma ultrassonografia que constatou tumores na bexiga e baço. Os médicos somente diziam que a situação era gravíssima. Quem sugeriu eutanásia fui eu.

Há que se saber dizer chega. A morte vem para todos que vivem —bactérias inclusive, mortas no processo de divisão celular que transforma uma em duas, assim como o teletransporte da ficção científica destrói um corpo aqui para recriá-lo lá longe. Se a vida é o processo de auto-organização de sistemas biológicos às custas de cadeia de transferência de energia e matéria, chamada "metabolismo", morrer é o processo de desorganização paulatina quando o metabolismo cessa, salvos casos de desintegração súbita por aniquilação da estrutura do corpo.

Vida é desequilíbrio auto-organizado e autossustentado, transmitido diretamente de células já vivas dos pais e mantido às custas da energia que circula pelo sangue. Morte é equilíbrio —e chegar a esse equilíbrio é todo um processo.

Com insuficiência renal e hepática mais atrofia muscular severa, Neguinho já estava morrendo. Deixá-lo terminar de morrer naturalmente, o que isenta cérebros humanos da sensação de culpa ao se tornarem agentes do equilíbrio final alheio, era arriscar deixá-lo morrer sozinho, e depois de muito mais sofrimento, o que para mim é egoísta e imoral quando desnecessário.

Meus pais concordaram e assinaram a autorização, enquanto eu pedi ao veterinário para eu acompanhá-lo e ficar com Neguinho durante o processo. Eu queria que isso tivesse acontecido em casa, para que meus pais pudessem tê-lo dado banho uma última vez, o que ele gostava, mas já era tarde.

Acalmei Neguinho fazendo-lhe carinho atrás das orelhas e sobre o focinho enquanto ele recebia uma dose elevada de propofol, meu nariz colado ao seu. Senti-lo relaxar com a anestesia foi um alívio. Com seus olhos já fechados, sem dor, e com minha mão em seu peito, senti quando o cloreto de potássio intravenoso parou seu coração.

Mas a morte é um processo, e ainda havia vida, mesmo que anestesiada, no cérebro dele, que ainda fez o cérebro respirar alguns minutos. Sem circulação, contudo, sangue oxigenado não chega mais ao tronco encefálico, e, conforme mais neurônios atingem o equilíbrio e param sua atividade, a respiração desacelera e enfraquece. São cada vez menos neurônios ainda capazes de organizar mais uma inspiração, até que ela para. E parou.

Pedi um minuto ao veterinário e continuei acariciando Neguinho até não achar mais possível ainda haver Neguinho em seu cérebro. Retirei seu colar, que minha mãe quis guardar, e agradeci aos veterinários pela gentileza de me deixar estar ali. Para mim, assistir Neguinho em sua morte e sobretudo presenciá-la foi minha forma de demonstrar respeito e reverência à sua vida.

Fonte: Jornal Folha de São Paulo

Autora: Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

 

 

 

OS PENSAMENTOS DURANTE O PROCESSO DE DESENCARNAÇÃO

 


O que pensamos nos minutos enquanto o cérebro morre?

Novo estudo demonstra que após a parada cardíaca e a perda de consciência, o cérebro tem um pico de atividade, principalmente nas áreas associadas à visão e à consciência

Por Fernando Reinach

Eu devia ter 14 anos quando descobri que a morte não ocorre instantaneamente, mas é um processo relativamente longo. Foi no dia em que me contaram que as unhas de um cadáver continuam a crescer durante o velório.

Hoje sabemos que isso não é verdade; é o dedo que murcha após a morte e causa essa impressão. Entretanto, depois que o coração para de bater, o corpo fica sem oxigênio e perdemos a consciência, os neurônios cerebrais levam de 3 a 7 minutos para morrer.

Se a pessoa for doador de órgãos, os médicos precisam retirar os órgãos doados para transplante em 30 minutos e implantá-los em até seis horas. Caso isso ocorra, o órgão sobrevive no novo corpo, indicando que continuava vivo. Isso demonstra que a morte é um processo que dura tempos diferentes em diferentes órgãos e que só termina quando a última célula do corpo morre.

A novidade é um estudo que demonstra que após a parada cardíaca e a perda de consciência, o cérebro tem um pico de atividade, principalmente nas áreas associadas à visão e à consciência. E isso pode explicar as experiências lembradas por pessoas que sobrevivem a uma parada cardíaca.

Todos nós já vimos no cinema: a pessoa tem um ataque cardíaco, o coração para, a respiração também. A vítima perde a consciência imediatamente e as pessoas em volta passam a fazer massagem cardíaca apertando ritmicamente o peito do paciente.

Essa manobra mantem um pouco do sangue circulando, e o pulmão oxigenando o sangue. Para tentar reativar o coração, podem ser dados choques e drogas quando ela chega no hospital. No desenrolar do filme, duas coisas podem acontecer.

A primeira é os médicos não conseguirem reativar o coração e, num dado momento, desistirem, desligarem os equipamentos e declararem a pessoa morta. A segunda é que os esforços funcionam, o coração volta a funcionar e a pessoa pode sair lépida do hospital.

Entre as pessoas que se recuperam de uma parada cardíaca, aproximadamente 10% relatam experiências consistentes dos pensamentos que tiveram quando estavam inconscientes. São os chamados pensamentos próximos da morte (near death experiences).

Eles normalmente envolvem visões da pessoa saindo do corpo, e da vida sendo recapitulada rapidamente. Esses relatos são tão consistentes que os cientistas hoje acreditam que eles têm alguma relação com a falta de oxigênio no cérebro.

Esse novo trabalho tenta descobrir o que ocorre no cérebro nos 5 a 10 minutos depois que o fluxo de oxigênio é interrompido. Foram estudadas quatro pessoas em que os esforços de reanimação do coração foram infrutíferos e os médicos decidiram parar a massagem cardíaca, os choques, e desligaram todos os sistemas de suporte.

Mas nesses quatro casos tudo foi desligado, menos o aparelho de eletroencefalograma, que mede a atividade cerebral. Esses pacientes, no momento em que tudo foi desligado, estavam completamente inconscientes e não apresentavam nenhuma resposta neurológica.

O aparelho de eletroencefalograma consiste em uma série de eletrodos fixados no couro cabeludo que medem a atividade elétrica na parte do cérebro logo embaixo do osso da caixa craniana. Em pessoas saudáveis, esses sinais elétricos são diferentes quando nosso cérebro executa diferentes funções, e sua análise permite identificar de maneira grosseira o que está ocorrendo no cérebro.

O que os cientistas observaram é que o cérebro desses pacientes mostrava pouca atividade durante o tempo em que os médicos estavam tentando reanimar o paciente, algo típico do estado de coma.

Mas assim que o fluxo de oxigênio é interrompido, a atividade cerebral aumenta abruptamente e essa atividade dura por até 6 minutos, quando ela cessa completa e definitivamente. Esses seis minutos são a transição entre um cérebro vivo e um cérebro morto.

Analisando o padrão dessa atividade, as áreas ativadas, e as comunicações elétricas entre diversas regiões, os cientistas concluíram que durante esse tempo, em que o cérebro está morrendo, é possível que pensamentos inconscientes e memórias sejam ativadas. Como todos esses pacientes não sobreviveram à parada cardíaca não é possível saber o que eles relatariam se acordassem.

Mas uma consequência dessa descoberta é que talvez essa atividade cerebral que ocorre durante os primeiros minutos da falta total de oxigênio sejam os processos que geram as memórias e pensamentos próximos a morte reportados por parte dos pacientes que sobrevivem a uma parada cardíaca.

O que poderia estar acontecendo é que assim que o fornecimento de oxigênio ao cérebro cessa, essa atividade cerebral intensa gera sensações de saída do corpo e memórias do passado. Quando esses pacientes são reanimados e seus corações voltam a bater novamente, eles saem do coma, acordam, e essas lembranças voltam à consciência. Os cientistas esperam testar essa possibilidade no futuro próximo.

O interessante do estudo é que ele representa uma nova linha de investigação cujo objetivo é estudar e compreender os fenômenos que ocorrem durante o processo da morte. Essa compreensão pode ajudar a entender que processos podem ser revertidos e como revertê-los. Sem dúvida, é uma área da ciência um pouco mórbida e triste, mas que pode ser promissora.