Aporofobia: uma doença brasileira
Nas entranhas de parte da elite, aversão a
pobres se entrelaça ao racismo
Aldineto
Miranda Santos
Professor de filosofia e filosofia da educação do IFBA
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia)
Para
combater uma doença é necessário conhecê-la, saber de sua existência e seus
sintomas e, posteriormente, buscar estratégias de combate. Foi a partir dessa
constatação que a filósofa espanhola Adela
Cortina buscou explicar uma patologia social, um fenômeno que existia;
contudo, por não ser reconhecido, era difícil de ser combatido.
Essa
patologia foi denominada
por Adela Cortina como "aporofobia",
termo que surge da união de duas expressões gregas: "á-poros" (pobre,
sem recursos) e "fobos" (medo, aversão, ódio); ou seja, aversão a
pobres. Tal flagelo sempre assolou a sociedade brasileira e talvez seja a
resposta para a clássica pergunta que Darcy
Ribeiro fez na sua obra "O
Povo Brasileiro": "Por que o Brasil não deu certo?".
Esse
questionamento fica matutando na mente de todos que pretendem entender este
país, e parece-nos que a aporofobia é uma pista importante para a responder à
questão. Tal patologia social se entrelaça com outras mazelas sociais,
principalmente com o racismo. Várias
situações refletem esse entrelaçamento, a exemplo da tentativa eugenista,
encabeçada por intelectuais, políticos e escritores no século 19 e até meados
do século 20, de tentar
"branquear" o país por meio do processo de miscigenação,
ocorrido em sua gênese a partir do estupro de mulheres indígenas e negras.
A
marginalização do negro na sociedade brasileira e a negação à dignidade sempre
foram práticas aporófobas, pois a pobreza no Brasil não se trata somente da
condição econômica, mas se intersecciona com a questão racial.
Da
mesma maneira, qualquer iniciativa de alternativa ao status quo foi combatida,
perseguida e destruída ferozmente pela elite política, latifundiária e
empresarial brasileira, que se utilizou do Estado para punir e tornar os pobres
invisibilizados —a exemplo da chacina
de Canudos, uma guerra contra trabalhadores que buscavam uma vida
solidária.
Mas
não é preciso ir tão longe na história. Basta constatar os ataques cotidianos
contra moradores de rua, sendo o mais emblemático o ocorrido em 1997, quando
cinco jovens queimaram o índio Galdino, que dormia em um ponto de ônibus em
Brasília. Quando interpelados sobre o ato, responderam que não sabiam se
tratar de um indígena —pensaram ter ateado fogo a um mendigo.
Outro
fato é a crueldade que ocorre cotidianamente nas periferias brasileiras,
aberrações normalizadas, nas quais jovens
pobres e negros são mortos por policiais negros —os quais, por vezes,
também morrem numa hipócrita "guerra contra as drogas".
Em
um país de uma elite aporófoba, a manutenção da desigualdade social se faz pela
perseguição das minorias. Por isso é necessário, para a "elite do
atraso", lembrando aqui as palavras do sociólogo Jessé
Souza, que as comunidades periféricas continuem a ser vistas como lugares
de má fama, de horror e de morte.
Cria-se
dessa forma um círculo vicioso em que as desigualdades sociais e raciais, além
da falta de políticas públicas de inclusão, empurram vários jovens da periferia
para a criminalidade. Essa marginalização "atesta" o rosto do
criminoso no Brasil: preto e pobre.
Os
noticiários apontam para essa doença social: crianças
negras mortas nas favelas por balas "perdidas"; pobres morrendo
em mesas de cirurgia em abortos clandestinos; devastação de territórios dos
povos indígenas; discursos e crimes de ódio contra pessoas e movimentos
sociais.
Tudo
isso demonstra que essa doença social está entranhada no Brasil. A aporofobia
está presente como substrato, mas, além da aversão, também é medo, é horror ao
pobre. Mas tal medo não é de todo injustificado, pois se os que são explorados
cotidianamente descobrirem sua soberania e compreenderem que na verdade são
maioria, ainda que invisibilizada, haverá o perigo dos oprimidos se perceberem
gente, povo autônomo, e que sua força e criatividade sempre foram a cura para
um país e uma elite doente, possuindo em suas mãos as ferramentas para destruir
as estruturas arcaicas mantidas pela aporofobia.