Locais da inteligência geral e função executiva do cérebro: vermelho: áreas comuns, laranja: inteligência geral, amarelo: função executiva (crédito: Aron Barbey) |
Onde se esconde a inteligência no cérebro?
Difícil de ser medida, ela tem fins práticos nem sempre
simuláveis
Um
grave acidente abriu um buraco na testa de A.P., aos 23 anos, uma janela
mal-acabada com vistas para os seus lobos frontais. Foram necessários muitos
dias de reabilitação e várias cirurgias até ele conseguir voltar ao lar. Os
meses se passaram e ele melhorava. Fortalecido, desejou retornar ao trabalho.
Mas era incapaz de reter em sua mente um objetivo sem que se perdesse na
distração aleatória provocada por seus pensamentos e sem que se confundisse em
meio às outras obrigações não prioritárias. Sem conseguir cumprir exigências,
foi demitido.
Antes do trauma, A.P. arrumava impecavelmente o seu quarto.
Depois, pilhas de tralhas sortidas cresciam ao lado de sua cama. A
desorganização atingia também a sua vida social; ele não conseguia planejar nem
sequer uma atividade para o próximo final de semana. Por alguma razão, ele
precisou de um laudo técnico sobre suas deficiências. Quem lhe prestava
cuidados decidiu redigir tal documento enriquecido com testes cognitivos. A.P.
pontuou 120, escore acima da média populacional na escala mais utilizada para
se aferir QI (quociente de inteligência). Ele também foi bem em testes que
avaliam as habilidades cognitivas dos domínios frontais.
A história de A.P. não é totalmente inédita. O influente
neurocientista português António Damásio já nos havia contado a saga de um homem que, apesar de ter lesões
permanentes em seus lobos frontais, possuía QI de 130, tal qual um superdotado.
Embora possivelmente considerado inteligentíssimo, ele não conseguia organizar
sua vida. Demorava horas em tarefas simples. Para decidir se jantaria fora de
casa, ele solicitava informações sobre disposição de mesas, ambiente e menu de
diversos estabelecimentos. Às vezes, rumava até um restaurante para verificar a
lotação e, mesmo assim, não conseguia tomar qualquer decisão.
Inteligência tem uma relação direta com os lobos frontais, e
há bons precedentes para pensar assim. Nós humanos temos frontes mais altas em
relação às dos outros primatas e a dos Neandertais. Esse aumento surgiu da
impressão frontal cerebral e tem paralelo com a nossa complexidade.
Sabemos também que danos nessas áreas podem alterar
gravemente o comportamento e as capacidades intelectuais, já que esses lobos
estão envolvidos na regulação da conduta social e no preparo de estratégias. E,
claro, sustentam alguns fundamentos mentais de difícil definição, como o
livre-arbítrio e o pensamento crítico.
Estudos apontam que a capacidade da analogia parece ter como
seu centro uma subdivisão do lobo frontal esquerdo. Por sua vez, a inteligência
fluida, que é a capacidade de raciocinar livremente, sem conhecimento prévio,
parece orbitar parte do lobo frontal direito.
Então como explicar os contrassensos encerrados em A.P. e no
paciente de Damásio? Como essas duas pessoas conseguiram pontuação elevada em
teste de QI, mas ao mesmo tempo não desempenhavam bem?
Imagens
do crânio de A.P. - Reprodução
Primeiro, danos no lobo frontal são frequentemente difusos e
não é tarefa simples definir quais subdivisões acometem. Segundo, as avaliações
de inteligência são imperfeitas. A forma como os testes neuropsicológicos são
organizados nem sempre alcança as disfunções rotineiras, pois cada teste traz
um problema explícito a ser resolvido, dentro de uma tarefa curta e fortemente
direcionada pelo examinador. Nenhum desses demanda a criação de estratégias de
maior duração, em um ambiente instável, constituído por informações que não
surgem simultaneamente. Ao responder tais questões, não é necessário avaliar o
impacto de uma decisão, especialmente quando o desdobramento não sai como o
previsto.
Ou seja, os testes não conseguem reproduzir adequadamente
alguns problemas diários. A vida é mais desorganizada e imprevisível do que um
suceder de perguntas e provoca dúvidas cujas respostas não são tão claras nem
imutáveis.
Os planejamentos para o dia a dia dependem das oportunidades
e das dificuldades que ocorrem em tempo real. São realizados pelo impulso da
intenção, que adequam um roteiro esquemático a um ensejo.
Inteligência é difícil de medir e tem fins práticos nem
sempre simuláveis.
Autor: Luciano Magalhães Melo
Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos,
seus dilemas e as doenças que o afetam.