O delírio do impostor e os nossos erros do dia a dia
Quando cérebro deixa de utilizar as provas à sua frente para
atualizar seus conceitos
Fôssemos perfeitos, atualizaríamos sempre as nossas ideias em resposta aos fatos. Se as evidências mudam, mudaríamos nossos pensamentos de acordo com elas. Mas nós, de matriz imperfeita, frequentemente subutilizamos as novidades e insistimos em convicções fixas.
Graças aos vieses mentais, perdemos oportunidades seguidas de
perceber que um conceito subjetivo seria mais bem classificado como uma ideia
opaca. Um delírio é um erro extremo de juízo frente às informações disponíveis.
É acreditar firmemente em algo a despeito de todas as evidências em contrário.
A seguir, cética pessoa que me lê, apresento-lhe três histórias para
demonstrar-lhe a complexidade do assunto.
A primeira tem como protagonista uma mulher de 83 anos que,
em certa manhã, ao olhar para o marido, não o reconheceu como tal. Para ela, à
sua frente estava uma imitação. Nervosa, enxotou aquele suposto falsário.
Ninguém da família ainda sabia, mas a causa da confusão era um tumor cerebral
assentado no lobo frontal direito dela.
A segunda faz referências a um homem de 31 anos, que passara
uma noite em claro a consumir cocaína. Ficou furioso e aos berros insultava sua
mulher, chamando-a de vigarista. Para ele, a esposa não era a esposa, mas
alguém que tentava roubar o lugar de sua verdadeira e "sumida"
companheira. A situação foi transitória, durou até a intoxicação desaparecer.
Os dois enredos exemplificam um delírio específico, cujo tema
é a substituição de alguém muito próximo por um impostor idêntico. Essa psicose
é reconhecida como Síndrome de Capgras, nome
que faz reverência a Jean Marie Capgras (1873-1950), médico francês que em
Paris estudou com os melhores alienistas de seu tempo. Em 1923, ele identificou
"a ilusão dos sósias" e descreveu seus aspectos clínicos
minuciosamente.
Capgras recorreu às teorias freudianas para apontar as causas
desse transtorno. À sua época, era quase sempre assim que os médicos explicavam
as origens das doenças mentais. Ele ensinou que a anomalia era consequência de
fatores determinantes, os quais incluíam choques emocionais, traumas psíquicos
e conflitos sociológicos. O delírio seria uma construção mental para proteger o
indivíduo de algum perigo.
Com
essa perspectiva, o alienista admitiu que uma de suas pacientes sofria da
"ilusão de sósia" devido a uma invenção do inconsciente, forjada para
esconder vontades incestuosas direcionadas ao seu pai. Se a figura do homem
fosse desvinculada da paternidade, ela estaria moralmente livre para desejar o
que bem entendesse.
Para
chegar a conclusões desse tipo, Capgras disse ter considerado até os menores
detalhes de suas longas conversas com os enfermos. Paradoxalmente, enquanto
afirmava importar-se até mesmo com essas discretas sutilezas, ignorou que seus
pacientes enfrentavam doenças como sífilis e disfunções cognitivas. Nem
considerou que esses penares poderiam ser a causa do distúrbio que revelou.
Está cumprida minha promessa, acabei de lhe entregar a terceira história.
Porém,
experiências clínicas acumuladas década a década apontam quais doenças causam a
Síndrome de Capgras. A princípio, imaginou-se que as culpadas seriam apenas
certas moléstias psiquiátricas, como esquizofrenia e transtornos do humor.
Atualmente sabemos que afecções degenerativas, como as doenças de Parkinson e
de Alzheimer, isquemias cerebrais, tumores encefálicos, intoxicação, entre
outras, podem provocar tal delírio.
Essas
condições, se interromperem determinados fluxos de informações processados no
cérebro, farão emergir a Síndrome de Capgras. Dessa forma, os sistemas visuais
identificam uma determinada figura humana, em seguida criam dados que ativam
parcialmente elementos de memória. Ocorre o fracasso em recordar aspectos
emocionais e alguns cognitivos. O cérebro alcança a imagem, mas não o seu
significado, a familiaridade torna-se intangível.
Acontece
também outra falha, a mente perde a crítica e ratifica um conceito bizarro.
Lembro que não é necessário haver uma lesão, já que intoxicações podem
prejudicar os citados tráfegos de informações. Para pessoas com esse delírio
existe algo intuitivamente perceptível, embora não nomeável, que denuncia a
substituição de alguém por um sósia falsário.
Em
resumo, a Síndrome de Capgras desponta que evidências relevantes falham em
afetar uma crença. Ao mesmo tempo, uma implacável e inconsistente desconfiança
supera outras percepções e borra a formatação do entendimento. De maneira
doentia e exagerada, o cérebro deixa de utilizar as provas à sua frente para
atualizar seus conceitos. Singelamente, nós fazemos isso o tempo todo.
Trabalho de Luciano Magalhães Melo
Folha de São Paulo