Espiritualidade na medicina: ‘Fé não garante cura, mas sem ela fica mais difícil’, diz geriatra
Para
Fábio Nasri, coordenador de grupo focado no tema do Hospital Albert Einstein,
pesquisas mostram que tratamento de pacientes deve considerar também suas
crenças
Desde
os tempos dos “primeiros médicos”, os xamãs e curandeiros, espiritualidade e
medicina caminharam juntas. Depois, se separaram, como se fossem opostas. A
relação tem sido resgatada recentemente, no Brasil e no mundo, puxada por
pesquisas que mostram a influência da espiritualidade em desfechos favoráveis
de saúde.
No mês passado, o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, criou um grupo médico-assistencial focado no tema. O objetivo é aprofundar os conhecimentos na combinação entre espiritualidade e medicina, e em como ela pode aumentar o bem-estar de pacientes, inclusive levando líderes religiosos para os leitos, quando solicitados.
Em
entrevista, o coordenador do grupo, o geriatra Fábio Nasri, é enfático: “Quando
o paciente entra no hospital, não pode entrar só o coração, o apêndice. É
preciso considerar toda a dimensão dele, inclusive a espiritualidade. Ela pode
ser mais uma ferramenta poderosa de saúde”.
Por
muito tempo a medicina foi tida como uma área objetiva e direta, e a
espiritualidade, como algo subjetivo, quase como se uma fosse impeditiva da
outra. Afinal, elas combinam?
A
espiritualidade é parte das pessoas. Mesmo quem não tenha uma fé, crença ou
religião, interage com a natureza, com o clima, com o sol. Não podemos
negligenciar essa dimensão nas pessoas, seria apartar algo intrínseco ao cuidar
da saúde delas. Houve uma separação no passado. Mas a tendência hoje no Brasil
e no mundo é de juntar esses valores novamente. Não há como atender um
paciente, dar a notícia de que ele tem um câncer, dizer que ele vai fazer uma
cirurgia complicada ou que tem uma doença crônica sem atendê-lo como um ser
completo. E a espiritualidade não pode ficar de fora. Pode, inclusive, ser
ferramenta adicional no arsenal terapêutico.
Os “primeiros médicos” eram líderes espirituais, os xamãs. Como se deu essa separação?
Vem
de muito tempo. Desde a teoria da razão de (René) Descartes, houve interesse
também da Igreja de que houvesse essa separação. Como se fosse um acordo do
tipo: "Olha, vocês ficam com o corpo, a gente fica com a alma". Ao
mesmo tempo, a Ciência começou a se desenvolver, e houve uma espécie de
materialização das sensações. A medicina seguiu um curso reducionista.
O
que levou à reaproximação?
Começaram
a acontecer fatos que chamavam a atenção, em vários campos da Ciência médica.
Primeiro as experiências de quase-morte, em que pessoas que passavam por
períodos de morte momentânea e retornavam relatavam experiências de encontrar
entes queridos. Outros pesquisadores começaram a publicar casos de lembranças
de vidas passadas. Existem relatos impressionantes de crianças que em idade
muito tenra lembravam de vidas pregressas. Ao mesmo tempo, tornaram-se mais
conhecidos desfechos favoráveis de saúde em pessoas com a espiritualidade mais
presente. Elas iam melhor em uma série de quesitos.
Que
efeitos a espiritualidade produzia nesses pacientes?
Passavam
melhor pelas doenças, pelo pós-operatório. Não falo de cura, mas de vivência do
processo, de como atravessam um período duro. Pesquisas ao longo do tempo
mostram que quem realmente acredita, tem fé, tem uma evolução melhor. Isso
chamou atenção, e os estudos aumentaram. É um caminho sem volta.
A
Ciência comprova esses benefícios?
Diversos
artigos mostram isso. Quando uma pessoa faz uma prece, independentemente da
religião, a frequência cardíaca tende a diminuir, a pressão cai. Há uma série
de fenômenos pensando em neurotransmissores e estimulação cerebral que fazem
bem às pessoas que têm a espiritualidade intrínseca. Diminui a atividade do
sistema simpático, responsável por aumentar a pressão e a frequência cardíaca.
Melhora a perfusão cerebral. Ativa sensações ligadas a prazer e bem-estar
libera ocitocina, serotonina. E não necessariamente precisa de um templo para
isso. A pessoa pode admirar música, o pôr do sol, meditar, fazer yoga.
Normalmente quem segue esses preceitos acaba sendo mais saudável, por questão
de conduta. Mas também existe um outro lado.
Quando
a espiritualidade pode fazer mal à saúde?
Existem
pessoas que se dizem religiosas, mas não incorporam esses valores em suas
vidas. Então não colhem os benefícios. Existem também as que acham que só a
crença vai curá-las. E desistem do tratamento. Ou vão a outros lugares onde
entendem que vão ser curadas, mas não são espaços de índole adequada. É preciso
cuidado também. O que vemos na medicina é que não dá para sair dizendo que a fé
é garantia de cura. Mas dá para dizer que sem ela é mais difícil.
A
delicadeza do tema explicaria por que médicos ainda são receosos de abordá-lo
em consulta?
Existem
pesquisas que mostram que os pacientes gostariam que os médicos abordassem esse
tema no consultório. E existem pesquisas entre médicos, inclusive no Brasil,
que é líder de estudos na área, que indicam que eles gostariam de falar mais
sobre isso com os pacientes. Mas há médicos que receiam que os pacientes achem
que eles querem levá-los para a igreja deles. Além disso, numa consulta em que
o médico tem de verificar pressão, colesterol, tratar câncer, avaliar a memória
etc, nem sempre sobra tempo. Mas o principal motivo é que os médicos não têm
treinamento para isso. Não é só sair perguntando: “E aí, você tem alguma
religião?” Há uma estratégia, e poucas escolas brasileiras oferecem aulas sobre
isso.
A
pandemia reforçou a importância da espiritualidade em momentos críticos?
Outro
dia, cheguei no hospital cedinho para ver pacientes e me surpreendi quando vi a
equipe que estava pegando o plantão formar uma roda e fazer uma prece para que
tudo corresse bem, para que pudessem ser instrumento de auxílio aos doentes. Vi
depois que era prática em vários momentos no hospital. E isso talvez seja um
efeito pós-pandemia. Um dos maiores pesquisadores dessa área já preconizava os
benefícios de que médicos orassem junto com os pacientes antes de uma cirurgia
ou procedimento. Mas ainda não é algo muito difundido.
Para
que lado caminham as pesquisas?
Muitos
estudos mostram a associação positiva entre espiritualidade e bons desfechos em
saúde. Várias sociedades médicas brasileiras já incorporaram esse tema. O pulo
do gato é como isso acontece. É fácil explicar e a pessoa entender que no
momento em que ora, medita ou vai a uma cachoeira isso traz benefícios para os
sistemas endócrino, cardiovascular, etc. O problema é como isso acontece no nível
da célula. Qual é a proteína? Como essa energia entra? É algo do DNA? Não
sabemos. Precisamos abrir a cabeça. Ainda vai demorar para descobrir.
Por Elisa Martins
O Globo