Crença na imortalidade transforma bilionários em profetas apocalípticos sem Deus
Sujeitos também creem no desenvolvimento de uma inteligência
artificial similar ou superior à humana
Não resisto à tentação de começar esta coluna repetindo uma
piada clássica sobre os primórdios da computação. Dizem que, nos anos 1950,
quando os EUA puseram seu primeiro supercomputador em funcionamento —um monstro
valvulado, maior do que a maioria dos apartamentos paulistanos de hoje—, o
presidente Dwight Eisenhower (1890-1969) teria perguntado à máquina se Deus existia. A resposta: "Agora existe".
Pois bem: anda difícil escapar à sensação de que, quando o
assunto é inteligência artificial, tem muita gente poderosa por aí concordando com o
interlocutor de Eisenhower. Os investimentos bilionários na área, com toda
aquela aversão clássica a críticas ou regulação externa tão cara ao Vale do Silício, frequentemente se fazem acompanhar da crença de que seria desejável
e/ou inevitável desenvolver inteligências artificiais similares ou superiores à humana em breve. Pra
ontem, se for possível.
E a coisa não para por aí, é claro. Circulou nesta semana,
pelas redes sociais, o apelo de um desses futurólogos para que obtenhamos o
máximo de gravações de áudio e vídeo dos nossos entes queridos já idosos. O
motivo: com os avanços da IA (vou
ter de abreviar esse negócio, não vai ter jeito), em breve poderemos usar esses
dados para criar simulações computacionais extremamente realistas de quem nos
deixar. Quer falar com o finado vovô? É só baixar este aplicativo aqui, ó.
Ou seja, os sujeitos não apenas querem confiar à IA a tarefa
de criar Deus —ou alguma coisa muito superior a um ser humano, pelo menos— como
também acham que ela vai abrir as portas da imortalidade.
Depois de respirar fundo, rezar um pai-nosso e uma ave-maria
e assim domar meu instinto de cobrir de cadeiradas quem defende esse tipo de
coisa, dei-me conta de algo curioso. A nova heresia dos devotos da IA não
passa, no fundo, no fundo, de uma versão secularizada —portanto,
(superficialmente) não religiosa— de uma das vertentes mais antigas da teologia
cristã: o milenarismo.
Simplificando brutalmente uma discussão teológica que poderia
ser um livro, podemos dizer que uma das grandes inspirações do milenarismo é a
narrativa em ritmo de videogame do livro do Apocalipse, o último da Bíblia.
Também é comum, hoje em dia, que essa corrente de pensamento se manifeste por
meio da crença no arrebatamento, suposto momento dramático em que os
verdadeiros cristãos seriam arrebatados ao céu de corpo e alma. (Não é por
acaso, aliás, que a ideia de fazer o "upload" da consciência humana
para um computador tenha sido apelidada de "arrebatamento geek".)
Em comum com o milenarismo cristão, as crenças dos devotos da
IA (e também a dos que acham que a biotecnologia será capaz de produzir alguma
forma de imortalidade biológica) têm como corolário a possibilidade de um reino
dos céus a ser vivenciado em breve, aqui mesmo na Terra.
Há outra semelhança ainda mais perturbadora: o sectarismo.
Enquanto os milenaristas cristãos acreditavam (e alguns ainda acreditam) que só
um punhado de eleitos de Deus terá acesso às chaves do reino, o paraíso dos
devotos da IA e da biotecnologia é de quem puder pagar por ele.
Não estou convencido de que seja possível criar uma IA
com inteligência similar ou superior à humana, e me parece praticamente certo que a busca pela
imortalidade biológica ignora aspectos básicos do funcionamento dos seres
vivos. Mas, mesmo que tais ideias fossem exequíveis, o essencial é perceber que
elas brotam do que há de mais escroto na natureza humana. Além disso, vale
ressaltar que todas as tentativas de milenaristas para exercer poder no mundo
real terminaram em desgraça para todos os envolvidos. Quem tiver ouvidos para
ouvir, que ouça.
Publicado na Folha de São Paulo