É possível recriar o 'sopro de Deus' e dar origem à vida?
A origem da vida na Terra há muito fascina os
cientistas; podemos refazer as condições que permitiram seu surgimento?
Cerca
de 4,5 bilhões de anos atrás, o então recém-formado planeta
Terra ainda não abrigava animais, plantas e bactérias.
Mas,
em algumas centenas de milhões de anos, as primeiras formas de vida primitivas
surgiram no planeta. Como isso aconteceu?
Este
é um dos maiores mistérios da ciência, mas
talvez estejamos mais perto do que nunca de descobrir o que fez surgir a vida
na Terra. E os pesquisadores estão fazendo grandes avanços para recriar este
processo em laboratório.
Quando
o planeta se formou, as condições na Terra eram completamente
inóspitas para o desenvolvimento da vida. Violentas
erupções vulcânicas lançavam sulfeto de hidrogênio para a atmosfera.
Havia pouco oxigênio e o planeta enfrentava frequentes bombardeios de
asteroides.
Ainda
assim, sabemos que a Terra se tornou um local muito mais acolhedor em
relativamente pouco tempo, em termos geológicos — apenas" 200 milhões de
anos depois.
Os
registros fósseis comprovam que o nosso mundo estava repleto de organismos
unicelulares simples cerca
de 3,7 bilhões de anos atrás. Mas como essas primeiras formas de vida
conseguiram sobreviver?
Existe
um consenso de que, para que exista vida, é preciso ter compostos orgânicos que
contenham carbono, como metano, aliados à água e a uma fonte de energia. Esta
faísca daria início às reações químicas necessárias para criar moléculas mais
complexas, como aminoácidos — os blocos de construção de proteínas — e RNA — um
ácido nucleico presente em todas as células vivas com estruturas similares ao
DNA.
Mas
o que forneceu essa faísca — o chamado
"sopro de Deus"? E será que podemos recriar essas condições?
RELÂMPAGOS
E TROVÕES
Uma
hipótese é que a intensa radiação
ultravioleta e os relâmpagos existentes no jovem planeta Terra podem
ter fornecido a energia necessária para formar os aminoácidos e,
posteriormente, moléculas como DNA e RNA nos oceanos.
Esta
teoria recebeu apoio em 1952, quando o então estudante de doutorado Stanley
Miller (1930-2007), da Universidade de Chicago, nos Estados
Unidos, associou-se ao Prêmio Nobel de
Química Harold Urey (1893-1981), para tentar recriar as condições
atmosféricas da Terra nos seus primórdios.
Eles
injetaram amônia, metano e vapor d'água em um recipiente de vidro fechado e
introduziram uma faísca elétrica através do beaker para simular um relâmpago.
Surpreendentemente, formaram-se aminoácidos espontaneamente.
Mas
pesquisas posteriores demonstraram que as condições atmosféricas do modelo de
Miller e Urey provavelmente não existiam na Terra naquela época. Outro problema
é que a maior parte do planeta ficou coberta de gelo por quatro bilhões de anos
e raramente
existem relâmpagos nessas condições.
Mas
Jeffrey Bada, ex-aluno de Miller e professor de química marinha do Instituto
Scripps de Oceanografia em San Diego, nos Estados Unidos, acredita que os relâmpagos
possam ter se formado nas nuvens de cinza
vulcânica. E existem boas razões para acreditar que essas condições
produzem intensas tempestades com raios.
Em
2022, o vulcão subaquático Hunga
Tonga-Hunga Ha'apai, no sul do Oceano
Pacífico, entrou em erupção e liberou uma série de gases, cinzas e vapor de
água do mar a 52,8 km de altura na atmosfera. O resultado foi a surpreendente
ocorrência de 25.508 relâmpagos em apenas cinco minutos.
"Havia
um grande número de pequenas ilhas vulcânicas nos primórdios da Terra",
afirma Bada. "Suspeito que esses vulcões entrassem em erupção com bastante
violência e havia muitos deles."
Os
vulcões teriam lançado gases como hidrogênio e monóxido de carbono para a
atmosfera. E, segundo Bada, os intensos relâmpagos que acompanhavam as erupções
podem ter fornecido a faísca necessária para converter esses gases em
aminoácidos.
Em
um estudo recente, Bada trabalhou com colegas da Universidade de Munique, na
Alemanha, para simular relâmpagos de origem vulcânica em um aparelho contendo
monóxido de carbono e gás hidrogênio.
"Processei
os resultados no meu laboratório e tenho bastante certeza de que encontramos
aminoácidos", afirma o cientista.
Os
aminoácidos teriam se formado inicialmente na atmosfera, antes de caírem sobre
os flancos dos vulcões. Lá, eles podem ter sido levados pela água para pequenos
lagos e lagoas, onde a vida teria melhores condições de se propagar.
Estas
conclusões vêm de encontro aos argumentos já existentes de que a vida não
poderia ter começado em mar aberto, pois as substâncias químicas baseadas em
carbono seriam imediatamente espalhadas, sem se aproximarem o suficiente para
reagir com outras moléculas.
Já
nas piscinas rasas, o calor do Sol evaporaria a água, concentrando substâncias
como cianeto de hidrogênio, o que permitiria que elas se reunissem com mais
frequência.
Os
pesquisadores recriaram este processo em laboratório, gerando com sucesso os
três principais blocos moleculares de construção da vida — o
DNA, as proteínas e os lipídios — a partir de cianeto de hidrogênio.
Mas alguns cientistas ainda estão céticos sobre esta teoria.
"Para
mim, o problema com [a vida] começando em piscinas é que não há nelas uma força
direcionadora óbvia", segundo o professor de bioquímica evolutiva Nick
Lane, do University College de Londres (UCL). "A teoria é que a radiação
UV poderia ter energizado moléculas de cianeto, causando sua reação, mas a
quantidade de cianeto que havia na Terra jovem é algo questionável."
"Acredita-se
que as primeiras formas de vida tenham crescido a partir de hidrogênio e
dióxido de carbono, não de cianeto", explica o professor, "e os
processos químicos são totalmente diferentes, de forma que você não está
partindo do mesmo ponto que deu origem à vida."
RESPIRADOUROS
HIDROTÉRMICOS
Lane
acredita que respiradouros hidrotérmicos no fundo do oceano sejam uma fonte
mais provável do início da vida.
Essas estruturas em forma de labirinto são como um paraíso longe do mar aberto. Aqui, fluidos quentes ricos em minerais borbulham através de pequenas aberturas na crosta da Terra.
"Os
respiradouros hidrotérmicos fornecem hidrogênio em grandes quantidades e acreditamos
que os primeiros oceanos fossem ricos em CO2", explica Lane. "Por
isso, os respiradouros podem ter sido a zona de mistura ideal para que essas
substâncias se reunissem."
Quando
o hidrogênio reage com CO2, ele forma ácidos carboxílicos. A partir deles, é
possível criar cadeias de ácidos graxos - um componente importante das
membranas celulares - e aminoácidos.
Os
poros no centro dos respiradouros hidrotérmicos podem ter desempenhado papel
fundamental na catálise da reação entre hidrogênio e CO2.
Lane
explica que sua estrutura é quase igual à das células, com uma membrana que
contém minerais de enxofre e ferro. E o lado externo dos poros também tem carga
positiva em relação ao lado interno, que é conhecido como gradiente de prótons.
Este
processo é o mesmo que ocorre nas células biológicas.
"Esta
estrutura similar às células rompe eficientemente a barreira entre a reação de
hidrogênio e CO2", segundo Lane. "Os dois são gases bastante estáveis
- normalmente, eles não reagem com muita facilidade - mas a combinação de
minerais de enxofre e ferro e gradientes de prótons causa a sua reação."
Na
última década, pesquisadores começaram a demonstrar experimentalmente que
substâncias pré-bióticas podem ser formadas sob condições hidrotérmicas.
Em
2019, Lane e sua equipe do UCL chegaram a criar com sucesso "protocélulas" simples
em um ambiente similar ao dos respiradouros hidrotérmicos.
Lane
tomou um grupo de ácidos graxos e álcoois graxos - que pesquisas anteriores
demonstraram que podem ter se formado sob condições hidrotérmicas —
e tentou fazer com que elas formassem espontaneamente uma membrana celular rudimentar.
E, surpreendentemente, ele conseguiu.
"Conseguimos
uma membrana com duas camadas e material aquoso no seu interior", ele
conta. "Concluímos que realmente era mais fácil fazer isso em condições
similares aos respiradouros hidrotérmicos. Você precisa de alcalinidade, altas
temperaturas e água salgada."
CHOQUES
DE METEOROS
Outra
teoria afirma que a queda de meteoritos poderia ter fornecido a faísca que
gerou a formação dos primeiros compostos orgânicos.
Os
meteoritos contêm altos níveis de metais como ferro, níquel, cobalto e urânio,
frequentemente utilizados como catalisadores na Terra. E, quando um meteorito
entra na atmosfera, ele se aquece e esses metais são oxidados.
"Nos
primórdios da Terra, tínhamos uma atmosfera composta principalmente de CO2 e
nitrogênio", explica o professor de química orgânica Oliver Trapp, da
Universidade Ludwig Maximilian, de Munique. "Por isso, imaginei que o CO2
pudesse ter sido ativado sob essas condições."
Em
um estudo de 2023, a estudante de PhD Sophia Peters, aluna de Trapp,
tomou partículas
de ferro retiradas de meteoritos e cinza vulcânica e as misturou com
vários minerais que se acreditavam estar presentes nos primórdios do planeta
Terra. Estes minerais servem de estrutura de suporte receptiva, à qual se
aderem as partículas de ferro.
Como
a atmosfera da Terra, naquela época, não continha oxigênio, Peters retirou
quase todo o oxigênio da mistura. Ela então colocou a mistura em uma câmara sob
pressão preenchida principalmente com moléculas de dióxido de carbono (CO2) e
hidrogênio, para reproduzir as altas pressões atmosféricas da superfície da
Terra.
O
experimento funcionou. Foram formados compostos orgânicos, incluindo álcoois,
acetaldeído e formaldeído.
Acetaldeído
e formaldeído são os blocos de construção de diversas das moléculas mais
importantes da vida, incluindo ácidos graxos, nucleobases, açúcares e
aminoácidos.
Além
disso, os pesquisadores demonstraram que, quando você mistura aldeídos com
outras substâncias que se acredita que estivessem presentes na atmosfera
inicial da Terra, como cianeto, amônia e gás sulfeto de hidrogênio, acontece
algo muito interessante.
"Nós
conseguimos produzir moléculas orgânicas que são capazes de modificar
diretamente sua própria estrutura e catalisar a produção de outras moléculas
similares", afirma Trapp.
Estas
moléculas, conhecidas como organocatalisadores, passam por um processo de
evolução por meio de seleção natural, em que as moléculas mais "bem
sucedidas" se reproduzem. E, segundo Trapp, elas podem ter desempenhado um
papel importante no surgimento da vida na Terra.
"O
que descobrimos é uma camada oculta entre as primeiras moléculas orgânicas
pequenas e compostos autorreprodutores posteriores, como o RNA", explica o
professor.
E
quanto ao RNA? Esta molécula é encontrada em todas as células e desempenha um
papel fundamental para transformar as instruções contidas no DNA do genoma em
proteínas funcionais nas células dos seres vivos.
Mas
muitos cientistas acreditam que, nos primórdios do planeta Terra, as moléculas
de RNA capazes de reproduzir-se realizavam grande parte do trabalho feito hoje
pelas células modernas, como a catálise da formação de proteínas.
Essas
moléculas de RNA poderiam ter eventualmente formado o ribossomo - uma fábrica
presente em todas as células do corpo, que usa as informações presentes no DNA
para construir proteínas. O ribossomo é construído principalmente com RNA.
Em um experimento inovador em 2022, cientistas liderados por Ada Yonath, do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, conseguiram criar em laboratório uma primeira versão primitiva do ribossomo, demonstrando como ele pode ter surgido na Terra primitiva.
Yonath
ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2009 pelo seu trabalho na determinação da
estrutura do ribossomo.
Esta
estrutura revela que existe uma bolsa no centro da molécula gigante. Esta bolsa
é encontrada nos ribossomos de todos os organismos, desde as bactérias até os
seres humanos. E é no seu interior que os aminoácidos se conectam para formar
as proteínas.
"A
bolsa permite que os aminoácidos sejam posicionados exatamente no lugar certo,
possibilitando a ligação de peptídeos", explica Yonath.
Segundo
ela, "este tipo de ligação pode ser realizado espontaneamente por dois
aminoácidos, mas a frequência e a eficiência seriam 10 mil, 100 mil ou até um
milhão de vezes menores se não existisse a bolsa."
No
seu estudo, Yonath copiou o projeto dos ribossomos bacterianos, incluindo as
bolsas onde ocorre a síntese das proteínas. Ela então preparou esses
protorribossomos em uma placa de laboratório.
Para
verificar se os ribossomos primitivos eram capazes de produzir proteínas, os
pesquisadores acrescentaram uma solução contendo aminoácidos, sais e outros
ingredientes. E, para alegria da equipe, os ribossomos sintéticos conseguiram
unir os aminoácidos entre si.
"Acreditamos
que o que fizemos no laboratório é análogo ou pelo menos imita o que aconteceu
na natureza", afirma Yonath. "Inicialmente, existiriam poucos RNAs
que se enrolaram entre si, formando uma pequena bolsa. A partir desses pedaços,
pode ter surgido um ribossomo funcional rudimentar."
Assim,
os protorribossomos mais bem sucedidos na catálise das ligações entre os
aminoácidos teriam permanecido por mais tempo e, em um dado momento, o
ribossomo teria nascido por meio de um processo de seleção natural.
Será
que o conhecimento deste processo nos deixa mais perto de entender a origem da
vida?
Temos
agora diversas explicações possíveis sobre como podem ter se formado os
primeiros compostos orgânicos. A energia pode ter sido fornecida pelos raios,
por meteoritos ou por respiradouros hidrotérmicos.
Mas
recriar com sucesso os primeiros compostos da vida em laboratório pode nos
ajudar a mostrar como o mesmo processo talvez tenha ocorrido em outras partes
do Universo.
Leia
a versão
original desta reportagem (em inglês) no site BBC
Future.
Autora: Jasmin Fox-Skelly
Sopa Primordial |