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O HINDUÍSMO E A FÉ

 


Parece que hoje em dia impera um certo senso comum entre nós de que fé e conhecimento são coisas opostas, mutuamente excludentes como luz e escuridão – se você tem conhecimento você não tem fé, e vice-versa. Há, no entanto, para contrariar essa noção, uma afirmação muito contundente na Bhagavad-Gita acerca da relação entre esses dois princípios: “shraddhavan labhate jñanam – aquele que tem fé ganha conhecimento.” De acordo com Krishna, o autor dessa afirmação, conhecimento e fé não só não são opostos como mantêm entre si uma relação muito peculiar de dependência: fé é condição sine qua non do conhecimento. Vamos entender o que isso significa.

Em primeiro lugar, o que é conhecimento? Parece-me que é algo cuja força de evidência acaba com quaisquer dúvidas ou desconfianças com relação àquilo que está se mostrando com tanta clareza, e faz com que possamos relaxar e prosseguir com o que quer que estejamos fazendo sem pensar mais naquilo. Agora mesmo enquanto escrevo este texto há uma enormidade de conhecimentos envolvidos nessa ação, um dos mais essenciais deles sendo o de que as palavras estão sendo realmente escritas no processador de textos, o que me permite relaxar e apenas escrever. E o que é que me concede a certeza de que de fato as palavras estão sendo escritas? São os meus olhos, com os quais tenho uma relação de plena confiança, fé.

Eu dou aos meus olhos o status de serem meios válidos de conhecimento com relação à forma e cor das coisas. E a única coisa que faz com que eu dê aos olhos esse status é a minha boa fé. Não é nenhum outro órgão de percepção que valida ou prova a autoridade dos meus olhos. Se eu mostrasse a vocês um objeto preto e perguntasse de que cor é o objeto vocês me responderiam corretamente: preto. E se em seguida eu pedisse para vocês me provarem que o objeto é preto, o que vocês fariam? Como vocês provariam? Está claro que nenhum órgão dos sentidos fora os olhos pode dizer qualquer coisa sobre a cor, e tampouco a lógica pode fazê-lo. Que raciocínio você poderia desenvolver para provar ou negar o fato visto de que o objeto é preto? Nenhum, porque cor é assunto do olho apenas, e o olho é a prova única e suficiente para cores.

Tendo a fé de que meus olhos são meios válidos de conhecimento eu posso interagir com o mundo razoavelmente bem. E se eu não tivesse essa fé, o que seria de mim? Há muitas pessoas no mundo com um transtorno de fé chamado Transtorno Obsessivo-Compulsivo, TOC. Existem muitos graus de manifestação desse transtorno, e nos mais sérios a pessoa fica, por exemplo, lavando as mãos por horas, acreditando que elas estejam sujas ainda que seus olhos e narinas lhe mostrem que elas estão limpas e perfumadas.

Nesses casos, existe uma condição para o alcance do conhecimento que não está sendo cumprida, e que não tem nada ver com os meios de conhecimento envolvidos, pois os olhos da pessoa com o transtorno descrito estão funcionando perfeitamente bem. A condição faltante é a fé, shraddha, sem a qual o conhecimento não ocorre. Ou alguém estaria disposto a dizer que aquela pessoa sabe que suas mãos estão limpas? Não sabe, pois se soubesse fecharia a torneira. É tudo que ela quer.

Ao autoconhecimento, sendo apenas um tipo particular de conhecimento, se aplica a mesma necessidade: é necessária fé no meio de conhecimento que o produz. E qual o meio de conhecimento que o produz? Chama-se Veda, ou, mais precisamente, Vedanta. Sem a fé de que as palavras de Vedanta são um meio válido de conhecimento não é possível obter o conhecimento que elas pretendem revelar.

Sem fé é possível obter a informação do que as palavras estão dizendo, e é possível até mesmo tornar-se um especialista em Vedanta que dá palestras pelo mundo todo. Mas essa pessoa falará sobre o assunto da seguinte maneira: “Segundo Advaita Vedanta, o eu (atma) é o todo (Brahman)”. E da mesma maneira ela falará, por exemplo, que segundo Vishishta Advaita Vedanta o eu é apenas uma parte do todo, e assim por diante.

Vedanta torna-se assim, por pura e simples falta de shraddha, apenas mais uma teoria, um sistema, e não um meio de conhecimento. Todos nós com algum tempo de envolvimento com Vedanta conhecemos alguém – geralmente do meio acadêmico – que estuda o tema há décadas e provavelmente sabe mais das minúcias do assunto do que nós mesmos, e no entanto não consegue afirmar com convicção que ele já é livre, o que, ironicamente, é tudo o que ela queria. A semelhança dessa pessoa com a que sofre de TOC não é mera coincidência: ambas sofrem da mesma falta de fé.

Para essa pessoa, não adianta o estudo de mais textos; ela precisa da qualificação prévia para o estudo dos textos, chamada fé, shraddha. Em um famoso texto da tradição chamado Vivekachudamani de Shankaracharya há, na seção que fala da qualificação do estudante, uma definição muito bonita de fé que corrobora o que viemos dizendo até aqui: “shastrasya guru-vakyasya satya-buddhi-avadharana sa shraddha kathita sadbhih yaya vastu-upalabhyate – a convicção de que as palavras do guru e da escritura são verdadeiras é chamada fé pelo sábio, por meio da qual a verdade é compreendida.

A definição é bastante ousada: yaya vastu-upalabhyate significa que a obtenção do conhecimento se dá por causa da presença de shraddha, e sem ela não há possibilidade de conhecimento. Isso significa que, no caso de Vedanta, a atitude acadêmica de “convença-me” nascida da “neutralidade” esperada de um cientista impede que o conhecimento se estabeleça, deixando o acadêmico apenas com a cabeça cheia e a língua afiada. E o interessante aqui é notar que a dita neutralidade acadêmica, que supostamente impede o acadêmico de estar previamente comprometido, é apenas uma farsa, pois ser “neutro” é apenas uma maneira peculiar de já estar comprometido. E é por isso que mumukshutva, o comprometimento com a liberação é outra qualificação prévia exigida para o estudo de Vedanta. Pois qualquer outro comprometimento impedirá a fé necessária para que o conhecimento aconteça e cumpra o seu propósito de fazer a pessoa fechar a torneira – interromper a sua incessante busca por felicidade ou completude.



Publicado originalmente no site: Satsanga Online