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8 - AS RELIGIÕES INSTITUÍDAS


As religiões instituídas são praticamente todas espiritualistas-crentes, pois são baseadas na fé e em dogmas. Uma das consequências das suas crenças é a intolerância existente entre as várias religiões. Ela é fruto da falta de compreensão de cada uma pelas outras. Mas para haver compreensão, é preciso conceituar o que está por detrás de cada religião, começando-se obviamente por separar claramente o que seria uma religião original, do que se tornou essa religião devido a tradições e interpretações que foram acumulando-se com os tempos, modificando-a.

Um caso típico desses, que menciono pois é muito pouco conhecido e mal compreendido, é a questão do monoteísmo universal. A religião judaica, de onde esse conceito espalhou-se para o ocidente, não era absolutamente monoteísta em sua origem. Por exemplo, o primeiro mandamento diz: "Eu sou I’hová [minha transliteração da grafia do texto masorético vocalizado, correspondente ao que se denomina de Jeová], teu Deus [no original, Elohim, que é um plural; ver o próximo parágrafo], que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porque eu, I’hová teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para com aqueles que me amam e guardam meus mandamentos." [Bíblia de Jerusalém, Ex. 20:2-6.] Uma leitura isenta de preconceitos mostra claramente que não está dito que não existem outros deuses, e sim que há um só, I’hová, atribuído ao povo hebreu, a quem este deveria obedecer. As "imagens esculpidas" podem ser representações de coisas físicas, mas também de seres não-físicos, o que seria o caso de seres divinos (no plural; "céus" pode significar o mundo espiritual, e "terra" o mundo material). É também interessante notar a referência ao fato de I’hová ser ciumento e vingativo. É só ler a invasão dos hebreus na Terra Prometida e ver os casos sanguinários de terra arrasada ordenados por ele, por exemplo no caso da cidade de Jericó [Jos. 6:21]. De fato, a doutrina do amor altruísta, da bondade irrestrita, só aparece com o Cristo, substituindo o vingativo "olho por olho, dente por dente" [Deut. 19:21], e com a introdução do perdão individual – antes, considerava-se que só I’hová e os Elohim podiam perdoar. Aliás, é interessante notar que o Cristo não quis fundar uma nova religião, e sim apenas renovar o judaísmo, pois o ser humano havia mudado desde a origem dessa religião. Objetivamente, os Evangelhos não são códigos de conduta nem dão prescrição de cultos: são o relato da atuação dessa entidade, o relato de uma vida, dando-se um exemplo de atitude e ação que se julgava dever ser seguido para o bem da humanidade.
Voltando à questão do monoteísmo, já a primeira denominação do que hoje se chama de Deus é um plural, "Elohim" [Gen. 1:1], e só posteriormente é que aparece I’hová [Gen. 2:4]; já aí temos várias entidades diferentes, que a tradição aos poucos interpretou como uma só, conhecida por "Deus". Em lugar de pronunciar "o nome inefável" I’hová, a tradição judaica introduziu a palavra "Adonai", que significa literalmente "meus senhores", novamente um plural. Eu já tinha grande desconfiança com relação ao pretenso monoteísmo judaico, quando li o magnífico livro de Paul Johnson, História dos Judeus. Ele conclui que o monoteísmo universal só aparece com Isaías [JOH, p. 86]. Portanto, antes de Isaías havia o que eu denomino de um "monoteísmo local" ao povo hebreu, significando que havia apenas uma divindade, I’hová, associada a ele, e não outras, cuja existência não é negada. A compreensão do que significa monoteísmo é fundamental para se compreender as religiões ditas monoteístas.
Falando de Deus, é importante reconhecer que, independentemente de como se encara essa entidade, se ela fosse onipotente, como querem várias religiões, o ser humano não poderia ser livre. Por outro lado, ela não pode ser onisciente pois, por exemplo, não tem nossos olhos para conhecer o mundo físico como o conhecemos, e jamais passou pelo sofrimento que os seres humanos podem passar (como por exemplo a dor), e muito menos vivenciar a morte (não confundir Cristo com Deus; nos evangelhos, o primeiro refere-se ao segundo como "pai"). Note-se que, em meus livros e artigos, eu jamais apelo para Deus para explicar ou justificar seja lá o que for pois, para abordar os assuntos pertinentes ao mundo não-físico, não necessito da noção de uma entidade abstrata dessas; basta referir-me ao fato de que cada ser humano, cada animal e cada planta contêm algo de não-físico individual (e também coletivo no caso de plantas e animais, daí sua falta de "individualidade superior" e suas manifestações), ligado ao seu corpo físico; a sua manifestação é algo palpável, como por exemplo a diferença fundamental entre minerais, plantas, animais e seres humanos. Pode-se admitir que a suas diferentes formas exteriores são simplesmente expressão de seus constituintes não-físicos.
A compreensão das religiões só pode advir de um espiritualismo científico. Obviamente, assuntos religiosos escapam totalmente a uma cosmovisão materialista do mundo. Por outro lado, uma religião é dificilmente compreendida por outra pois esta é garantidamente espiritualista-crente. Note-se que tolerância é diferente de compreensão; no entanto, esta pode levar à primeira.
Da mesma maneira que o materialismo-crença leva a fanatismos pela ciência e pela tecnologia, o espiritualismo-crença de todas as religiões leva facilmente ao fanatismo, ou fundamentalismo, religioso. Vemos ainda nos dias de hoje esse tipo de fanatismo, que faz os adeptos serem levados pelos sentimentos, especialmente pelo ódio, a ponto de chegarem a cometer homicídios, tanto no judaísmo, quanto no cristianismo, no islamismo, no hinduísmo, etc., numa total volta indevida a um passado que a humanidade há muito ultrapassou. É óbvio que existem círculos mais humanos dentro dessas religiões, mas isso ocorre quando elas se modernizam. Infelizmente, elas não chegam à total modernização que, em minha opinião, seria a sua evolução para o espiritualismo científico.
Parece-me que as religiões tornaram-se, em geral, uma forma de materialismo. Max Weber já apontou para a ligação da ética protestante com o anseio por um enriquecimento monetário, tipicamente egoísta e materialista. Aqui no Brasil, temos os exemplos vivos de várias seitas evangélicas que, claramente, são religiosas apenas nas aparências ou para os ingênuos. É muito comum adeptos fundamentalistas de várias religiões não respeitarem a vida humana – exatamente o contrário do que se esperaria se as religiões fossem realmente espiritualistas; lembremos que da matéria não pode advir respeito. Por seu lado, o espiritismo mediúnico, muito popular no Brasil, procura forçar a manifestação material do não-físico, em lugar de elevar cada ser humano ao nível da observação consciente do mundo não-físico. Uma outra manifestação do materialismo das religiões é a maneira como teólogos interpretam narrações da Bíblia, como se fossem puramente físicos, o que inclui o criacionismo bíblico citado no item 2 e sobre o qual me estenderei em mais detalhes no próximo item.
Em seu recente livro, Richard Dawkins argumenta contra as religiões instituídas e sua crença em Deus [DAW b]; eu concordo com muitos de seus interessantes argumentos, e aprendi muito com seu livro, apesar de ter muitas objeções a ele. Mas se vê claramente que, sendo um materialista, ele não pode compreendê-las. É muito importante reconhecer que seus argumentos contra Deus e certas práticas das religiões não se aplicam ao espiritualismo científico.

prossegue em 9 - O ABISMO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO