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9 - O ABISMO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO


Hoje em dia é muito comum considerar-se que há um abismo intransponível entre ciência e religião, a ponto de se declarar que as áreas abrangidas por cada uma são totalmente distintas, isto é, a ciência não teria nada a dizer sobre religião e esta nada a dizer sobre fatos científicos (não confundir esses fatos com a ética da pesquisa científica). Há mesmo vários cientistas que separam tanto as duas, que se permitem considerarem-se religiosos, como citei no item 6.

Há duas razões para o abismo em questão. A primeira é um profundo preconceito do materialismo-crença, que ignora e muitas vezes ridiculariza qualquer espiritualismo, recusando-se a tomá-lo em consideração. A segunda é o dogmatismo do espiritualismo-crença, especialmente das religiões instituídas, devido à sua falta de busca por compreensão de fenômenos em uma atitude anti-científica; isso produz, com razão, uma reação negativa por parte dos materialistas. É interessante notar que ambos sentem-se ameaçados um pelo outro. Assim, uma de minhas teses é que esse abismo é culpa tanto da ciência como das religiões, e não deveria existir.
Exemplo típico desse abismo é o provocado, do lado do materialismo, pelos adeptos da evolução darwinista, e do lado de muitos espiritualimos-crença, incluindo várias religiões, pelos criacionistas bíblicos. Ambos não se entendem pois seus defensores não adotam uma atitude científica. Se esse fosse o caso, os evolucionistas seriam mais humildes e se interessariam por possíveis explicações espiritualistas para muitos dos problemas apresentados pela teoria da evolução, como por exemplo o fato de os seres humanos terem a coluna vertebral com um duplo S (inexistente nos animais), não terem pelo ou penas, e terem desenvolvido a fala e o pensamento. A respeito desses dois últimos pontos, veja-se o interessante artigo de Ian Tattersal, onde ele diz: "[...] não podemos atribuir o advento das capacidades cognitivas modernas simplesmente como a culminação de uma tendência de desenvolvimento do cérebro ao longo do tempo. Alguma coisa ocorreu além de um polimento [buffing-up] do mecanismo cognitivo." [TAT, p. 44.] "[...] temos que concluir que o aparecimento da linguagem e os seus correlatos anatômicos não foi impulsionado por seleção natural, por mais que essas inovações benéficas possam parecer significantes a posteriori [in hindsight]." [p. 49.] Veja-se ainda o excepcional artigo do biólogo Craig Holdrege, "The giraffe’s short neck", que mostra alguns problemas da teoria darwinista, especialmente referente à crença popular (e científica) de que o pescoço da girafa cresceu para que ela pudesse alcançar folhas mais altas (para começar, Holdrege mostra que as fêmeas são mais baixas que os machos; eu ainda acrescento: se fosse para atingir folhas mais altas, as girafas deveriam ter-se mutado em macacos...). Aliás, Holdrege aparentemente encaixa-se perfeitamente no meu conceito de "espiritualista científico".
Uma observação pessoal quanto a uma classe de problemas da evolução darwinista: aqui em Campos do Jordão, onde estou escrevendo estas linhas, já observei e classifiquei uma dúzia de espécies de beija-flores. Como é que uma delas não teve vantagens evolucionistas e sobrepujou as outras, se há diferenças entre todas elas? Mais especificamente, há duas espécies bem distintas: um beija-flor cinzento de bico bem curvo e rabo comprido branco, Phaethornis eurynome, e outro, menor, todo verde, com pescoço branco, com uma mancha branca no olho, de bico reto e rabo curto, Leucochloris albicollis. (Já observei que ambas as espécies "beijam" as mesmas flores.) Como é que uma dessas espécies não se adaptou melhor do que a outra, e esta não desapareceu? Obviamente, os evolucionistas virão com especulações do tipo: "deve ter havido uma migração recente de pelo menos uma das duas, e não houve tempo para ela sofrer as mutações para chegar na outra", ou qualquer outra abstração semelhante, que considero insatisfatória.
E por falar em mutações, evidentemente não é uma só mutação que dá origem a uma outra espécie; deve ser um número enorme delas, encadeadas direitinho para que as mudanças sejam gradativas e harmônicas; imagine-se uma espécie de cabra simplesmente esticando paulatinamente o pescoço para ir alcançando folhas mais altas; as pernas, o tronco, as vértebras, etc. teriam que acompanhar com suas próprias mutações. Realmente, é preciso ter uma mente muito simplista para acreditar numa explicação dessas... Dawkins escreve que muitos seres vivos são altamente improváveis (ocorrem-me os desenhos e cores dos rabos dos pavões machos), mas a seleção natural explica que cada pequeno passo em sua evolução tem uma probabilidade muito maior [DAW b, p. 147]. Mas ele não menciona que muitas mutações têm que ocorrer simultaneamente para que alguma transformação vingue, e isso novamente é altamente improvável.
Por outro lado, os criacionistas bíblicos insistem em atribuir dogmaticamente a uma divindade, que denominam de Deus mas não o caracterizam com clareza, a criação praticamente simultânea, ex-nihilo, de todos os seres vivos, sem mostrarem como a atuação de algo não-físico pode influenciar o mundo físico – e mesmo se o mostrassem, teriam que indicar como as plantas, animais e seres humanos puderam adaptar-se ao seu aparecimento e a mudanças tão drásticas no ambiente em tão pouco tempo! Isso obviamente não pode ser aceito por alguém que adota uma atitude científica.
A partir desse abismo apareceram, principalmente nos EUA, conflitos em relação à educação, com obrigações e impedimentos de ensino de uma ou outra visão.
Um enfoque espiritualista-científico poderia resolver ambas as querelas. Em termos de evolução, bastaria supor que nem todas as mutações foram casuais, e nem toda seleção é natural. Em outras palavras, existiram processos não-físicos influenciando algumas delas. Eles não precisam ser devidos a uma única entidade não-física (que é a denominada por Deus). Pode-se supor que cada ser vivo tem algo de não-físico interagindo com o seu corpo físico, como por exemplo, o modelo que lhes dá e preserva a forma orgânica e é responsável pela regeneração dos tecidos e órgãos conservando sua forma semelhante à original. (Sobre a questão da forma, veja-se o interessante artigo de Steve Tallbot "Can the new science of evo-devo explain the form of organisms?"; veja-se também meu artigo "Por que sou espiritualista, onde dou ênfase à questão das formas simétricas, mostrando que membros não-físicos de seres vivos podem estar atuando para moldar e preservar essas formas). Espécies de animais também teriam algo não-físico que influencia todos os membros da espécie, daí os animais não terem o mesmo grau de individualidade que os seres humanos, que atualmente não estão sujeitos a esse algo coletivo. No item 5 eu esbocei brevemente minha teoria de como, nos seres vivos, usando transições não-determinísticas algo não-físico pode atuar sobre o físico.
Quanto à educação, a solução é de uma tal simplicidade que é de se admirar como não se a percebe. Acontece que o criacionismo bíblico é baseado em imagens, em parábolas, como já foi exposto no item 2. Ora, imagens cheias de fantasia são justamente o que crianças pequenas (pelo menos até os 9 anos de idade) precisam e gostam – daí apreciarem tanto os contos de fadas e histórias. Crianças não procuram explicações conceituais, que não entendem. Assim, o criacionismo bíblico é o que deveria ser dado até aquela idade. Por outro lado, jovens na idade do ensino médio (15 anos ou mais) já desenvolveram sua capacidade de abstração ao ponto de procurarem explicações conceituais, e não se interessam mais por historinhas com imagens para explicar fenômenos, não se satisfazendo com elas. Seria um absurdo ensinar as imagens da Gênese no ensino médio; aí a teoria darwinista deveria ser introduzida, mas como teoria, e não como verdade, mostrando-se seus vários problemas, como por exemplo os citados acima. A seleção natural ou artificial (por exemplo, na seleção de plantas e animais com algumas características desejáveis) é obviamente uma força atuante na evolução, tendo consequências sérias, como o caso do aparecimento de bactérias resistentes a antibióticos, um grande problema em hospitais. Os estudantes deveriam aprender algo sobre essas questões.
Não se deve ignorar a importância das ideias da evolução darwinista para o desenvolvimento da humanidade, o que também deve ser ensinado no ensino médio: ela contribuiu decisivamente para eliminar o poder da crença religiosa, que vai contra a tendência do ser humano moderno de buscar compreensão e formulação de conceitos claros. No entanto, uma das suas consequências fundamentais foi espalhar e praticamente impor o materialismo. Mas já é mais do que tempo de torná-la independente dele, de maneira a ampliar nossa compreensão do mundo.
Uma das mais famosas frases de Einstein, de 1941, é a seguinte: "A ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega" ("Science without religion is lame, religion without science is blind.") [ISA, p. 401, JAM, pp. 14, 76, 116]. Só que, do jeito que são a ciência e as religiões hoje em dia, é impossível haver a mescla que ele desejava. No entanto, se ambas mudassem seus paradigmas, a seguinte frase teria sentido: "A ciência sem o espiritualismo científico é manca, a religião sem o espiritualismo científico é cega." Sendo manca, a primeira não consegue chegar aonde devia, isto é, conceituar muito do que deixa obscuro; sendo cega, a segunda simplesmente não vê a realidade da natureza e do ser humano, e como hoje em dia ele anseia por explicações e rejeita dogmas. Se ambas evoluíssem para adotar o espiritualismo científico, não haveria mais o abismo existente hoje entre elas.

prossegue em 10.1 - POR QUE ADOTAR O MATERIALISMO?