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12 - UMA ESPIRITUALIDADE MODERNA


Em minha opinião, uma cosmovisão adequada à constituição humana de hoje deve ser um espiritualismo científico. Assim, deve basear-se na compreensão, na pesquisa, e na adoção de hipóteses de trabalho, e não na crença. Por outro lado, deve preservar irrestritamente a liberdade individual, a individualidade, a consciência e a auto-consciência, encarar os adultos como responsáveis, ter respeito e compaixão pela natureza e pelo ser humano, tudo isso baseado na compreensão do que são este último e o universo e não em dogmas moralistas. Deve também apresentar um edifício teórico coerente e abrangente (por exemplo, levando à compreensão de antigas tradições religiosas e míticas, bem como de fatos históricos). Esse edifício teórico, a sua cosmovisão, deve levar a realizações práticas que são a aplicação dos conceitos a toda a vida humana, de modo que o dia-a-dia de cada pessoa possa ser o mais possível coerente com sua cosmovisão.

Conheço um único espiritualismo científico que preenche esses requisitos e todos os citados no item 11: é a Antroposofia, introduzida por Rudolf Steiner durante o primeiro quarto do século XX. Justamente por encaixar-se na atitude científica que descrevi no item 3, ela foi denominada por Steiner e é muitas vezes chamada de "Ciência Espiritual", mas eu prefiro minha denominação de "espiritualismo científico", para não confundir com o que se entende por ciência hoje em dia, e que não tem sentido ser "espiritual", pois é inerentemente materialista. É interessante notar que Steiner teve uma formação tecnológica, na Escola Politécnica de Viena, e fez um doutorado em filosofia. Sua obra fundamental, evolução de sua tese de doutorado, A Filosofia da Liberdade (segundo ele próprio, aquilo que iria permanecer da Antroposofia no futuro distante), uma profunda análise da cognição, mostra como ele é capaz de ter um raciocínio claro, adequado ao nosso tempo, e como é capaz de expressar conceitos visando o intelecto dos leitores [STE]. Seus 28 livros, e as centenas de volumes publicados com mais de 6.000 de suas palestras, são de uma abrangência e profundidade inigualáveis. Aprofundando-se no estudo de suas obras, tem-se realmente a impressão de que ele foi o último sábio.
As aplicações práticas da Antroposofia incluem a ainda revolucionária e bem sucedida Pedagogia Waldorf (empregada em mais de 1000 escolas no mundo inteiro, inclusive no Brasil), a Medicina e Terapias Antroposóficas, a Agricultura Biodinâmica (em 1970 o então presidente da associação americana de agricultores orgânicos disse-me que considerava-a como o "máximo" em matéria de agricultura orgânica), uma organização social (denominada Trimembração do Organismo Social), artes novas (incluindo a Euritmia), etc.
Seria muito interessante o leitor dirigir-se a alguma faculdade de educação em sua cidade e fazer a pergunta: "Vocês abordam a Pedagogia Waldorf como parte do currículo em algum de seus cursos?" Afinal, ela existe desde 1919, há dezenas de livros publicados sobre ela, inclusive um excelente, no vernáculo [LAN], há revistas internacionais especializadas nela, ela está presente em todos os continentes, em particular em quase todos os países da América do Sul, e seus resultados são excelentes (ver um artigo com estatísticas feitas com formados da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo e que desmistifica certos mitos negativos sobre essa pedagogia). É interessante notar que a educação continuada foi adotada no Brasil por uma recomendação da UNESCO, que se baseou no sucesso mundial da Pedagogia Waldorf: as escolas Waldorf não usam e nunca usaram notas e não há repetições de séries, desde o início do ensino fundamental até o fim do ensino médio. A resposta que será encontrada invariavelmente à pergunta proposta no início deste parágrafo é simplesmente "não": essa pedagogia não é abordada nas faculdades de educação e, se o for, é por iniciativa pessoal de algum professor que já teve contato com ela. Ora, faculdades de educação deveriam abordar todos os métodos de ensino, ainda mais um que é um dos mais estabelecidos e difundidos e que é baseado em uma extensa conceituação (por exemplo, do desenvolvimento global, isto é, físico, emocional e intelectual da criança e do jovem) e prática. Em minha opinião, as faculdades de educação ignoram a Pedagogia Waldorf por uma razão muito simples: ela é baseada em uma cosmovisão espiritualista, a Antroposofia. Além disso, visite-se uma escola Waldorf para sentir a atmosfera de intenso amor pelas crianças e jovens; ter amor pelos alunos é justamente o que não se ensina nas faculdades de educação. O preconceito do materialismo-crença, prevalente em todos os meios acadêmicos, contra qualquer espiritualismo, impede que os estudantes tomem conhecimento dessa realidade educacional.
O edifício conceitual introduzido por Steiner é de uma abrangência excepcional, é coerente, e leva à compreensão de vários fenômenos, como por exemplo o sono, o sonho, a vida e a morte (conjeturo que, se não sair do paradigma materialista, a ciência jamais irá compreender profundamente esses quatro fenômenos). Por exemplo, ele explica por que os sonhos se apresentam em imagens e a causa de elas não seguirem, em geral, a lógica do mundo físico. Em sua conceituação, passa-se a compreender o que denominei no item 5 de "individualidade superior". Baseado nela, ele apresenta um conceito totalmente novo de reencarnação, o que não faz obviamente nenhum sentido do ponto de vista materialista, mas que pode ser tomado como uma consequência lógica de haver um sentido para a vida humana: o desenvolvimento da "individualidade superior", feito em vidas sebsequentes - sem essa possibilidade, não se teria chance de compensar os erros feitos durante uma vida. A propósito, sem uma noção sobre reencarnação é impossível compreender o budismo (um materialista diria que não há nada a compreender nele...). Steiner conceitua de maneira original a questão do bem e do mal, e muitas outras questões humanas e sociais. Como o próprio nome o diz, a Antroposofia parte do conhecimento do ser humano, sendo portanto humanista por natureza.
Uma das características mais fascinantes da Antroposofia é a visão que ela dá sobre o desenvolvimento pré-histórico e histórico do ser humano, passando-se a compreender figuras absolutamente incompreensíveis do ponto de vista materialista, como Zaratrustra, Buda, Moisés, Elias, Platão, Cristo, etc. Os mitos dos vários povos e as imagens bíblicas deixam de ser "historinhas", como o materialismo deve considerá-las. Para quem procura compreensão, ela dá uma imensa satisfação em se ver que é possível entender, por exemplo, muitas imagens da Gênese e do Velho Testamento, a grande contribuição do antigo povo hebreu para a humanidade, os desenvolvimentos que levaram ao aparecimento do Cristo, bem como resolver muitas das aparentes contradições dos Evangelhos. Por exemplo, por que os Evangelhos de Marcos e João começam apenas no batismo do Jordão, ao contrário dos outros dois, que começam com o nascimento de Jesus? Por que os Evangelhos de Mateus e Lucas são totalmente diferentes até esse batismo? Por que o de João é tão diferente dos outros três, os sinópticos? O que significa aquilo que deveria ser o aspecto central do Cristianismo, denominado de "ressurreição" do Cristo? Como compreender as mensagens do Apocalipse? Por que o cristianismo tornou-se durante muito tempo algo tão importante para a humanidade ocidental?
Segundo Steiner, a missão do ser humano na Terra é o desenvolvimento do amor altruísta. Como eu já mencionei no item 4, esse amor não faz sentido para um materialismo coerente. Um ato de amor altruísta só pode ser feito em liberdade, e esta requer consciência. Para isso, é necessário adquirir conhecimento, mas ele não pode ser encarado como a meta do desenvolvimento humano: de fato, é com conhecimento que se fazem, por exemplo, bombas para destruir seres humanos. Segundo Steiner, para cada passo dado na aquisição de conhecimento, principalmente do mundo não-físico, devem ser dados três passos no desenvolvimento moral ("aperfeiçoamento [do] caráter rumo ao bem") [STE b, p. 48]. Só que, para ele, a moral é uma consequência do conhecimento da constituição humana e da evolução da humanidade, e não uma questão de moralismo ou de dogmatismo. Nessa obra citada, Steiner dá exercícios meditativos no sentido de se desenvolverem órgãos de percepção supra-sensorial. A propósito, ele afirmou uma vez que não se consegue fazer alguma ação física em completa liberdade. Tomando-se o exemplo que dei no item 5, da pessoa que está numa esquina e pode escolher em liberdade um entre dois caminhos, é um fato que, provavelmente, ela não chegou àquele lugar por ações totalmente conscientes e em liberdade; portanto, há uma restrição à liberdade devido ao histórico das circunstâncias que fazem uma pessoa encontrar-se numa certa situação em um dado instante. No entanto, ao praticar uma meditação antroposófica, que usa um pensamento ativo (ver meu ensaio a respeito), uma pessoa está exercendo uma liberdade total: não há nada que a impele a essa prática, e nem a escolha do conteúdo mental da meditação, se este é escolhido adequadamente.
A Antroposofia mostrou que se pode lidar com o espiritual com um enfoque espiritualista científico, sem misticismo e sem proselitismo. É uma lástima que o medo dos cientistas e dos materialistas, de deixarem de exercer uma atitude científica, e a má experiência com religiões e misticismos, força-os a terem um preconceito contra ela, como exemplifiquei no caso concreto da Pedagogia Waldorf não ser abordada nas faculdades de educação.
É devido ao conhecimento que tenho da Antroposofia que pude formular os conceitos espiritualistas científicos expressos neste e em outros artigos. Espero que eles incentivem os materialistas científicos a terem coragem e suficiente falta de preconceito para estudarem a Antroposofia, por exemplo começando com o livro do Dr. Rudolf Lanz, Noções Básicas de Antroposofia (que está na íntegra na Internet) e meu artigo "Uma introdução antroposófica à constituição humana", mas não deixando depois de estudarem as obras básicas de Steiner (estou à disposição para indicar algumas obras segundo o interesse especial e conhecimento de cada interessado), a fim de constatarem que existem outras cosmovisões possíveis, muito mais abrangentes e humanas do que o materialismo ou o espiritualismo-crença, especialmente o das religiões, e que não exigem a abdicação de uma atitude científica como a exposta no item 3. Pelo contrário, a Antroposofia a incentiva.

Para refletir.


13. Referências
[CON] Conselice, C.J. "The Universe’s Invisible Hand". Scientific American 296, 2, Feb. 2007, pp. 24-31.
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[DAW b] Dawkins, R. The God Delusion. London: Transworld, 2007.
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[GOE] Goethe, J.W. Farbenlehre (teoria das cores). Eds. G. Ott e H.O. Proskauer. 3 vols. Stuttgart: Verlag Freiesgeitesleben, 1980.
[GOL] Goleman, D. Inteligência Emocional: A Teoria Revolucionária que Redefine o que é Ser Inteligente. Trad. M. Santarrita. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1995.
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[SEP] Sepper, D.L. Goethe contra Newton: Polemics and the project for a new science of color. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2002.
[SET] Setzer, V.W. Meios Eletrônicos e Educação: uma visão alternativa. São Paulo, Ed. Escrituras, 3ª ed. 2005.
[SET 2009] Setzer, V.W. An extensive review of Richard Dawkins' The God Delusion. Southern Cross Review No. 68, Jan. 2010. Ver o original, com revisões.
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[TAT] Tattersall, I. "How we came to be human." Scientific American 295, 6, Dec. 2001, pp. 42-49.
[ZAJ] Zajonc, A. Catching the Light: The Entwined History of Light and Mind. New York: Oxford University Press, 1993.
Agradecimentos
Agradeço a Sonia Setzer pela discussão de vários tópicos e revisão deste artigo, e a Anderson Paulino pela menção da frase de Sócrates em 3.2.