A morte é um
processo
Todo ser vivo morre, e o processo
merece respeito e reverência
Mas desta vez, Neguinho não se levantava mais. Nem
para fazer cocô ou xixi. Bebia água e comia algo se colocado em sua frente. O
veterinário colheu sangue e deu o diagnóstico: insuficiência renal e hepática.
Neguinho foi internado no dia seguinte para uma ultrassonografia que constatou
tumores na bexiga e baço. Os médicos somente diziam que a situação era
gravíssima. Quem sugeriu eutanásia fui eu.
Há que se saber dizer chega. A morte vem para todos
que vivem —bactérias inclusive, mortas no processo de divisão celular que
transforma uma em duas, assim como o teletransporte da ficção científica
destrói um corpo aqui para recriá-lo lá longe. Se a vida é o processo de
auto-organização de sistemas biológicos às custas de cadeia de transferência de
energia e matéria, chamada "metabolismo", morrer é o processo de
desorganização paulatina quando o metabolismo cessa, salvos casos de desintegração súbita
por aniquilação da estrutura do corpo.
Vida é desequilíbrio auto-organizado e autossustentado, transmitido diretamente de células já vivas dos pais e mantido às custas da energia que circula pelo sangue. Morte é equilíbrio —e chegar a esse equilíbrio é todo um processo.
Com insuficiência renal e hepática mais atrofia
muscular severa, Neguinho já estava morrendo. Deixá-lo terminar de morrer
naturalmente, o que isenta cérebros humanos da sensação de culpa ao se tornarem
agentes do equilíbrio final alheio, era arriscar deixá-lo morrer sozinho, e
depois de muito mais sofrimento, o que para mim é egoísta e imoral quando
desnecessário.
Meus pais concordaram e assinaram a autorização,
enquanto eu pedi ao veterinário para eu acompanhá-lo e ficar com Neguinho
durante o processo. Eu queria que isso tivesse acontecido em casa, para que
meus pais pudessem tê-lo dado banho uma última vez, o que ele gostava, mas já
era tarde.
Acalmei Neguinho fazendo-lhe
carinho atrás das orelhas e sobre o focinho enquanto ele recebia uma dose
elevada de propofol,
meu nariz colado ao seu. Senti-lo relaxar com a anestesia foi um alívio. Com
seus olhos já fechados, sem dor, e com minha mão em seu peito, senti quando o
cloreto de potássio intravenoso parou seu coração.
Mas a morte é um processo, e ainda havia vida, mesmo que
anestesiada, no cérebro dele, que ainda fez o cérebro respirar alguns minutos.
Sem circulação, contudo, sangue oxigenado não chega mais ao tronco encefálico,
e, conforme mais neurônios atingem o equilíbrio e param sua atividade, a
respiração desacelera e enfraquece. São cada vez menos neurônios ainda capazes
de organizar mais uma inspiração, até que ela para. E parou.
Pedi um minuto ao veterinário e continuei acariciando Neguinho
até não achar mais possível ainda haver Neguinho em seu cérebro. Retirei seu
colar, que minha mãe quis guardar, e agradeci aos veterinários pela gentileza
de me deixar estar ali. Para mim, assistir Neguinho em sua morte e sobretudo
presenciá-la foi minha forma de demonstrar respeito e reverência à sua vida.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo
Autora: Suzana Herculano-Houzel
Bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA).
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