Cancelamentos históricos e o racismo de Kardec, por Dora Incontri
Mesmo entre os críticos do sistema e dos que estão trabalhando para mudanças radicais, há um tal patrulhamento e atitudes de cancelamento, que impedem a necessária união para avançarmos.
Na sua Encíclica mais recente, Fratelli Tutti – Todos irmãos, que brilha em sua coerência humanista, em sua crítica ao sistema capitalista e em suas proposições de um mundo mais fraterno, o Papa Francisco toca em várias feridas contemporâneas. Uma delas é o “jogo de desqualificações” no cenário de polarização, que se estabeleceu em toda parte, impedindo um diálogo para um projeto comum para a humanidade.
Mesmo entre os críticos do sistema e dos que estão trabalhando para mudanças radicais, há um tal patrulhamento e atitudes de cancelamento, que impedem a necessária união para avançarmos.
Penso nisso agora, quando estamos no tema inquietante do racismo genocida em nossa sociedade brasileira. Não faltam estudos atuais, dentro da linha do pensamento decolonial, que mostram o quanto o projeto de colonização partiu de premissas, óbvias para o homem branco europeu, de superioridade racial e de domínio e extermínio dos povos colonizados. O primeiro a denunciar isso foi justamente um homem branco, europeu, que havia participado no início de sua vida como proprietário escravocrata na América Central, mas depois, tendo sofrido uma espécie de conversão, passou a defender a causa indígena e a apontar o genocídio que estava sendo perpetrado: o dominicano Bartolomé de las Casas. Entretanto, esse homem branco, europeu, era um homem, do seu tempo, da Igreja do século XVII. Então, se formos fazer sua leitura a partir das perspectivas do século XXI, vamos encontrar inúmeras contradições, que chocam a nossa sensibilidade atual. Em seu livro A Conquista da América, Tzvetan Todorov faz essa leitura, numa brilhante análise histórica. Mostra que, embora Las Casas defendesse a não-agressão e a não-escravização dos indígenas, ainda assim, participava do projeto de colonização religiosa e cultural dos povos originários e, ao mesmo tempo, não era tão claro na defesa dos africanos. Mas então, trata-se de uma leitura histórica, documental, em que Tzvetan desvenda em que aspectos Las Casas se destacava por sua generosidade, sinceridade e em que pontos estava representando a mentalidade colonialista, na qual estava culturalmente enraizado.
Penso que devemos fazer assim com as grandes personalidades da história, que deram alguma contribuição importante em sua época. Apreendê-las em seu contexto, sem praticar anacronismos históricos, mostrando em que avançaram e deram passos na direção de nossa compreensão de hoje e em que não conseguiram escapar de seus condicionamentos e suas contradições humanas.
Digo isso também em relação a Allan Kardec, que tem sido trazido para a discussão, às vezes furiosa, sobre a questão do racismo. Sim, Kardec teve também seus enraizamentos históricos, seus condicionamentos culturais de um homem branco, nascido numa França que tinha colônias na África e isso se reflete em algumas passagens de sua obra, que revelam a ideia de superioridade da “raça branca, europeia, civilizada”… Mas o projeto do espiritismo não é um projeto colonialista e de opressão de povos e etnias, porque o que ressalta do conjunto da obra é uma afirmação firme da igualdade entre todos e todas. Veja-se, por exemplo, essa citação:
“…do estudo dos seres espirituais, ressalta a prova de que esses seres são de natureza e origem idênticas (…) chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raça. Eis o que ensina o espiritismo.” (Revista Espírita, junho de 1867).
Há inúmeras outras citações nesse sentido nos livros de Kardec e, ao mesmo tempo, outras, com um desagradável ranço etnocentrista, eurocentrista e racista – palavras e conceitos, aliás, que nem existiam em meados no século XIX. Mas o que isso significa? Apenas que Kardec era humano. Como todos nós. Um homem que podia em alguns aspectos enxergar além do seu tempo e dar contribuições que nos servem até hoje – pelo menos àqueles que se identificam com suas propostas – e simultaneamente ainda manifestar, talvez sem perceber, a mentalidade de toda uma época colonialista, em que a ciência, considerada oficial, arranjava teorias racistas para louvar uma suposta superioridade do homem branco.
O cancelamento histórico ou atual – digo com personalidades do passado ou com pessoas do presente – por encontrarmos no meio de boas ideias e atuações positivas e inspiradoras, contradições ou incoerências é o que considero bastante empobrecedor, radical e intolerante em nossos tempos. Fazem isso também por exemplo com Gandhi, Martin Luther King ou qualquer pessoa que se põe em cena para dizer algo. E se alguém tenta fazer uma análise mais serena e mais compreensiva é logo acusado “de estar passando pano”.
É claro que existem seres humanos, que se afastam tanto de um padrão humano, como um Hitler ou Ustra e outros que tais por aí, que não há como aproveitar nada do que disseram ou fizeram a não ser para cumprir um ditado, por coincidência alemão, que diz: “ninguém é tão ruim que não possa servir como um mau exemplo”. Mesmo com esses criminosos, sádicos, que não tiveram outra atitude que a de torturar e matar, não me apetece ter discurso de ódio. Mas sim um lamento, uma perplexidade, uma interrogação filosófica e existencial de como um ser humano pode chegar tão abaixo de sua própria humanidade. Não quero que esses exemplos quase absolutos do mal me piorem por dentro, deixando-me possuir por ódio.
Compreendo que na posição de um negro, de um indígena, assim como na posição de uma mulher – e essa posso assumir no tão propalado “lugar de fala” – podemos nos ressentir, nos indignar, quando fazemos leituras históricas que mostram o que já se sabe sobejamente: que o racismo e patriarcado são estruturais há milênios. Então, não nos cabe destruir as personalidades que trabalharam sinceramente pelo progresso humano, porque ainda tiveram ressonâncias dessas ideias estruturais. Cabe sim, fazer sempre uma leitura crítica, histórica, com equilíbrio. E com nossos contemporâneos, paremos com esse cancelamento burro. Podemos dialogar, sem impor nossas cartilhas ideológicas, cancelando quem delas se afasta uma vírgula!
Publicado originalmente no site GGN