É possível apagar as lembranças
traumáticas do cérebro?
A mente
tem mais capacidade de guardar memórias ruins
No sistema nervoso, uma sinapse é uma estrutura que permite que um neurônio (ou célula nervosa) passe um sinal elétrico ou químico para outro neurônio. Crédito: Galeria de imagens do NIH. |
"Todos os dispositivos de armazenamento de memória, do cérebro a RAM do computador, armazenam informações alterando suas qualidades físicas. Há mais de 130 anos, o neurocientista pioneiro Santiago Ramón y Cajal sugeriu pela primeira vez que o cérebro armazena informações reorganizando as conexões, ou sinapses, entre os neurônios".
A MENTE TEM MAIS CAPACIDADE DE GUARDAR MEMÓRIAS RUINS
Há anos que não se tem notícias de Ulisses. Ele poderia ter morrido na Guerra de Troia. O filho dele, Telêmaco, visita Menelau e a esposa, Helena, em busca de informações sobre o pai. Lá, ele participa de um banquete no qual Menelau relembra as façanhas do rei de Ítaca.
Nesse momento, os convidados caem
em uma profunda tristeza ao se lembrarem dele. Mas Helena ordena que os criados
sirvam nepenthes, a bebida do esquecimento.
"Quem toma esta bebida
acalmará todos os seus males e será incapaz de sentir tristeza, pois faz
esquecer as lembranças dolorosas."
Eis que a felicidade volta aos ali
presentes.
É assim que Homero narra o
episódio no canto IV de Odisseia. Mas é tão fácil esquecer
uma memória traumática? Existe alguma evidência
científica que prove isso?
POR QUE ESSA FACILIDADE DE
LEMBRAR DO QUE É RUIM?
Nossa memória guarda muitas das
coisas que acontecem com a gente durante o dia, mas grande parte acaba sendo
esquecida.
No entanto, temos certa
facilidade em guardar as recordações ruins, apesar de não ser um processo
gratuito: nosso sistema nervoso precisa modificar certos circuitos neurais, com
a consequente síntese de proteínas e gasto de energia celular.
É curioso: todo esse esforço para
guardar uma memória que certamente nos deixará sequelas psicológicas e, no pior
dos casos, nos causará transtorno de estresse pós-traumático. Por quê?
Parte da explicação se baseia no
fato de que estas experiências negativas estão fortemente associadas a emoções.
E nosso cérebro classifica e armazena memórias com base em sua utilidade,
considerando que aquelas vinculadas a emoções são úteis para nossa
sobrevivência.
Se ficamos com muito medo ao
atravessar uma área perigosa da cidade, o cérebro armazena isso para que não
façamos novamente.
A situação se complica quando a
experiência é realmente traumática. Neste caso, nosso órgão pensante tende a
esconder essas experiências, mas as armazena sem processar. Como um mecanismo
rápido de defesa, tudo bem.
O problema surge quando, por
qualquer motivo, as lembranças ruins reaparecem. Aí o dano pode ser muito
grande por se tratar de experiências que foram arquivadas "cruas".
LUZ E SOM PARA ELIMINAR
EXPERIÊNCIAS TRAUMÁTICAS
A neurociência parece ter
encontrado algumas peças do quebra-cabeça que podem nos ajudar. Até mesmo o
menor fator poderia desempenhar um papel importante na hora de determinar se
guardamos ou excluímos uma memória.
Por exemplo, a luz, algo tão
comum e que afeta a todos, inclusive as moscas (Droshopila melanogaster),
que são capazes de esquecer acontecimentos traumáticos quando mantidas no
escuro. E tudo graças a uma proteína que atua como moduladora da memória e que
— esta parte nos interessa — está evolutivamente bastante conservada.
Em outras palavras, a proteína
está presente em todos os animais, inclusive em humanos. A explicação pode ser
relativamente simples: a luz atua como um modulador das funções cerebrais,
incluindo a manutenção da memória.
SONO, PROCESSADOR DA MEMÓRIA
Os sons são outra peça
importante, especialmente quando dormimos. O sono é essencial para o
processamento da memória.
Durante o dia nosso cérebro
instala aplicativos (memórias), e à noite os atualiza. Desta forma, a memória
recém-adquirida seria transformada em memória de longo prazo durante o descanso
noturno.
Seguindo este raciocínio, também
poderíamos fazer o contrário: usar estímulos, neste caso auditivos, para
desinstalar as experiências negativas, conforme asseguram pesquisadores da
Universidade de York, na Inglaterra, em um estudo recente.
Apesar de estudos deste tipo
ainda estarem em fase experimental, poderiam ser muito úteis para desenvolver
futuras terapias que permitam enfraquecer memórias traumáticas baseadas em
estímulos auditivos durante o sono.
DROGAS PROMISSORAS
Alguns de vocês podem estar se
perguntando se no futuro serão vendidas pílulas de luz ou pastilhas de som que
nos ajudem a esquecer as lembranças ruins. Não temos a resposta, mas temos
evidências científicas de que alguns medicamentos já existentes poderiam
contribuir para apagar a memória traumática.
O propranolol, por exemplo,
medicamento usado no tratamento da hipertensão arterial e que permite a animais
usados em experimentos de laboratório esquecer um trauma aprendido.
O segredo poderia estar em uma
proteína nos neurônios que determina se as memórias devem ser alteradas ou não.
Se essa proteína for quebrada, as memórias se tornam modificáveis; e, se ela
estiver presente, são mantidas.
Apesar de serem trabalhos
realizados em experimentos com animais em laboratório, são um excelente modelo
para o estudo do sistema nervoso. O cérebro humano, embora semelhante, é mais
complexo. Vamos a ele então.
UM ANTI-INFLAMATÓRIO COMO ESCUDO
CONTRA MEMÓRIAS INTRUSIVAS
As experiências traumáticas são
muito difíceis de esquecer e afetam seriamente as pessoas que passaram por
elas.
Foi o que pensaram os
pesquisadores da University College London (UCL), no Reino Unido, que acabaram
de publicar um estudo descrevendo como a hidrocortisona — uma droga
anti-inflamatória comumente usada para o tratamento da artrite — poderia
favorecer o processo de esquecimento de memórias intrusivas se administrada
após um evento traumático.
Curiosamente, o efeito foi
diferente para mulheres e homens, dependendo do nível de hormônios sexuais em
seu organismo. Por exemplo, homens com altos níveis de estrogênio apresentaram
menos recordações traumáticas.
Nas mulheres, aconteceu o
contrário: níveis elevados de estrogênio as tornavam mais suscetíveis a
lembranças ruins após o tratamento com hidrocortisona. Isso mostra que a mesma
droga pode ter efeitos opostos em algumas pessoas; daí a importância da
pesquisa com perspectiva de gênero.
Atualmente, a hidrocortisona só
tem sido eficaz quando administrada nas horas imediatamente após o trauma ou
antes de dormir, quando a memória se consolida. No entanto, a ciência continua
avançando na esperança de acelerar o processo natural de esquecimento e limitar
o sofrimento psíquico de longo prazo.
É verdade que este tipo de estudo
tem algumas limitações, como provocar estímulos traumáticos de forma
experimental, que pode não refletir a gravidade das recordações que acontecem
após uma experiência ruim na vida real.
Ainda assim, abre novas portas
para o estudo de novos tratamentos para vítimas de estresse pós-traumático. E
talvez até a possibilidade de apagar as lembranças ruins que as impedem de
levar uma vida normal.
Não sabemos o que acontecerá no
futuro, mas se você está se perguntando, recomendamos assistir ao filme Brilho
Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004). Talvez você encontre alguma
pista do que está por vir.
Este artigo foi publicado
originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado
aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em
espanhol).
Este texto foi originalmente
publicado aqui
Autor: José A. Morales García
é professor e pesquisador científico em neurociências
na Universidad Complutense de Madrid, na Espanha