Nos acostumamos a acreditar que pensamento e prática são
compartimentos distintos da vida. Quem pensa o mundo não faz o mundo e
vice-versa. Mas, houve um tempo em que os sábios, eventualmente chamados de
cientistas ou artistas, circulavam por diversos campos da cultura. Matemática,
física, arquitetura, pintura, escultura eram matéria-prima do pensamento e da
ação. A revolução industrial veio derrubar a ideia do saber renascentista e,
desde o século 19, a especialização foi ganhando força.
Mas, sempre haverá quem nos lembre que a vida é produto de um
contexto, de um acúmulo de vivências e ideias. Pense num filósofo que pegou em
armas contra o nazismo para depois empunhar as ferramentas da retórica contra o
stalinismo, que reconhece a importância dos saberes dos povos originais sem
abrir mão de pensar e repensar a educação formal.
Com mais de 90 anos, o francês Edgar Morin, nascido e criado
Edgar Nahoum no início do século 20, é um dos mais respeitados pensadores do
nosso tempo. Com uma gigantesca produção literária, pedagógica e filosófica. Em
tempos de radicalismos, Morin é herdeiro do melhor do humanismo francês. Em
entrevista ao programa Milênio, Edgar Morin fala sobre o extremismo e o
significado da educação na contemporaneidade. Leia abaixo:
Gostaria de começar com uma questão
generalista. Sociólogo, antropólogo, filósofo, professor, escritor, e até, às
vezes, jornalista. Qual a melhor definição de Edgar Morin e por quê?
A melhor definição seria não ter definição. De se bastar. A
palavra “filósofo” talvez me conviesse bem, mas hoje a filosofia, no geral, se
fechou em si mesma e a minha é uma filosofia que observa o mundo, os
acontecimentos, etc. Sou muito marginal, quer dizer, sou marginal em todas
essas áreas. Então, sou aquele que querem que eu seja.
Seria mais correto falar em um pensador do
estilo renascentista, alguém que mistura um pouco essas histórias todas?
Não exatamente que mistura, mas que tenta fazer a ligação,
que tenta ter uma cultura feita de conhecimentos que hoje estão dispersos. Mas,
é verdade que o Renascentismo foi admirável pelos homens que tinham um
conhecimento, não digo enciclopédico, mas aberto a várias áreas. Se quiserem,
acho que as perguntas fundamentais de cada um a si mesmo, “quem somos nós, para
onde vamos e de onde viemos?”, são questões fundamentais, precisamos
respondê-las e não afastá-las.
A tragédia do nosso sistema de conhecimento atual é que ele
compartimenta tanto os conhecimentos que a gente não consegue se fazer essas
perguntas. Se perguntarmos “O que é o ser humano?”, não teremos respostas,
porque as diferentes respostas estão dispersas. E, no fundo, é isso que chamo
de pensamento complexo, um pensamento que reúne conhecimentos separados.
E esse pensamento complexo do qual o senhor
fala estaria em oposição a um pensamento simples. Como se dá esse duelo hoje,
num setor que o senhor conhece bem, o ensino?
O que chamo de desafio da complexidade é que estamos em um
mundo onde encontramos problemas tão difíceis e separados, e uni-los. Como
fazer isso? Eu fiz um trabalho ao longo de muitos anos para, de certa forma,
elaborar um método que possibilite a união desses saberes, porque não podemos
simplesmente sobrepor, é preciso articulá-los.
Acredito que, para uma melhor compreensão da realidade, para
entender quem somos, que você é um ser complexo, que eu sou um ser complexo,
não podemos estar reduzidos a um único aspecto da personalidade, para saber que
a sociedade é complexa, para entender a globalização. Acredito que é sim
necessário um pensamento assim, senão temos um pensamento mutilado, o que é
muito grave, porque um pensamento mutilado leva a decisões erradas ou
ilusórias.
E como traduzir isso para os alunos, para as
novas gerações, por meio do ensino? Como é possível encarar essa tarefa tão
difícil para os educadores, para aqueles que estudam a educação e querem passar
adiante esse pensamento mais complexo, com uma visão um pouco mais ampla do
mundo do que aquela homogeneizada, simplista, com certezas bastante frágeis?
Eu proponho, no ensino, a introdução de temas fundamentais
que ainda não existem. Quer dizer, proponho introduzir o tema do conhecimento,
pois damos conhecimento sem nunca saber o que é o conhecimento. Mas, como todo
conhecimento é uma tradução seguida de uma reconstrução, sempre existe o risco
do erro, o risco de alucinações, sempre.
Eu proponho o método de incluir esses temas, de incluir o
tema da compreensão humana. É preciso ensinar a compreensão humana, porque é um
mal do qual todos sofrem em graus diferentes. Começa na família, onde filhos
não são compreendidos pelos pais e os pais não entendem seus filhos. Pode
continuar na escola, com os professores e os colegas. Continua na vida do
trabalho, no amor e acho que temos que ensinar também a enfrentar as
incertezas. Porque em todo destino humano há uma incerteza desde o nascimento.
A única certeza é a morte e não sabemos quando. Mas, é claro que estamos em
meio, não apenas das incertezas que chamaria de normais, de saúde, casamento, trabalho,
mas também uma incerteza histórica impressionante.
Antes, a gente achava que existia um progresso certo e agora
o futuro é uma angústia. Por isso, suportar, enfrentar a incerteza é não
naufragar na angústia, saber que é preciso, de certa forma, participar com o
outro, de algo em comum, porque a única reposta aos que têm a angústia de
morrer é o amor e a vida em comum.
Isso nos traz a um dos muitos caminhos que
temos para nos conhecer e conhecer o outro, que é a participação política. E o
senhor, desde muito cedo, teve uma participação política muito importante. Na
Resistência e, depois, com suas relações no Partido Comunista. Mas, muito cedo
também, o senhor aprendeu a fazer essa autocrítica e não hesitou em criticar
duramente o Partido Comunista e a ascensão da URSS Stalinista, depois da China
maoísta. Mais recentemente, a globalização. Politicamente, hoje, qual a luta
que o senhor considera que vale a pena lutar? Sabemos que o mundo vive uma
crise profunda de representação nas democracias, nos partidos, nos sindicatos.
Como fazer essa luta política?
Antes de mais nada, é preciso entender bem que estamos
ameaçados, cada vez mais, por duas barbáries. A primeira barbárie a gente
conhece, vem desde os primórdios da história, que é a crueldade, a dominação, a
subserviência, a tortura, tudo isso. A segunda barbárie, ao contrário, é uma
barbárie fria e gelada, a do cálculo econômico. Porque quando existe um
pensamento fundado exclusivamente em contas, não se vê mais os seres humanos. O
que se vê são estatísticas, produtos burros. No fundo, o cálculo, que é útil,
mas como instrumento, se torna um meio de conhecimento, mas de falso
conhecimento, que mascara a realidade humana.
No fundo, assim que entra o cálculo, os humanos são tratados
como objetos. E hoje, com o domínio justamente do poder e do dinheiro, com o
domínio do mundo burocrático, tudo isso, é o reino da barbárie gelada. Se
preferir, é preciso repensar a política e nós estamos na pré-história desse
momento. É preciso saber se as forças negativas, a corrente negativa vai ser
mais forte do que as forças positivas que tentam se levantar hoje no mundo e
são ainda muito dispersas.
Como fazer com que todas essas ferramentas, que
existem e foram desenvolvidas nas últimas décadas, possam ser utilizadas de uma
forma, digamos, mais positiva?
Antes de mais nada, é verdade que informação não é
conhecimento. Conhecimento é a organização das informações. Então, estamos
imersos em informações e como elas se sucedem dia a dia, de certa forma, não
temos como ter consciência disso. De outra parte, os conhecimentos, como eu
disse, estão dispersos. É preciso uni-los, mas falta esse pensamento complexo.
Dito isso, quando pensamos sobre a internet, a internet virou uma força
incrível, eu diria que em todas as direções, tanto para o lado negativo quando
para o positivo.
O que há de extraordinário na internet e em todos esses meios
que você citou é que, hoje, um Estado pode controlar um indivíduo em todos os
seus gestos e atos, mesmo quando ele está na rua lendo um jornal. Podemos ser
controlados. Mas, ao mesmo tempo, através da internet, um ou dois indivíduos
razoavelmente talentosos em matemática podem decifrar os segredos do Pentágono,
segredos diplomáticos dos mais importantes do Estado mais forte do mundo.
O senhor acha que neste mundo, com tantas
coisas que regridem, um país como o Brasil que o senhor conhece tanto tem algo
a ensinar aos outros notadamente quando se vê essa sociedade mestiça, essa
mistura que existe de verdade. Mesmo que tenhamos os nossos problemas com o racismo,
nossos problemas de exclusão e tudo isso. Mas, o senhor acha que essa sociedade
brasileira, com todos esses problemas, tem algo a ensinar?
Apesar dos limites, digamos, do caráter de segregação social,
é uma sociedade indiscutivelmente mestiça, que conseguiu integrar contribuições
vindas da África. Nunca em outro país a contribuição africana foi tão
intensamente integrada nos costumes, nem que seja na gastronomia, nas danças,
nos cantos. É um país muito interessante também onde, no Sul, que tem muitos
imigrantes alemães e italianos e o Nordeste, que é muito diferente com sua
população, os caboclos… Apesar dessa grande diversidade, é um país que nunca
quis se separar. Vejam a Itália, a Itália do Norte quer se separar da do Sul,
veja a Inglaterra, a Escócia quer deixar o Reino Unido.
No Brasil, mesmo com toda essa extraordinária
heterogeneidade, existe uma cultura comum que mantém a unidade. Ou seja, pra
mim, o Brasil é um grande estimulante. Um estimulante intelectual, mas também
humano, pois tem um calor humano, um sentimento de familiaridade, que também
perdemos na França e encontramos, muito vivo, no Brasil.
Eu já o vi e li dizendo que o monoteísmo era o
flagelo da humanidade. Queria saber se o senhor mantém essa posição hoje,
frente ao que vemos no Oriente Médio e nas lutas nacionalistas que misturam a
religião à importância nacional.
A fórmula é parcialmente verdadeira. Por quê? Porque há outro
aspecto muito presente no Cristianismo, sobretudo no Cristianismo de caráter
evangélico, e também no Islã, onde também há como princípio um Deus magnânimo e
misericordioso. Existe um universalismo, porque o Cristianismo e o Islã se
dirigem a todos os homens, a todos os seres humanos, não importa a raça. Quando
vemos a história do Cristianismo, há uma renovação dessa fonte de fraternidade
e de evangelismo. Mas, quando olhamos a mesma história do Cristianismo, também
vemos guerras religiosas, a Inquisição, as perseguições, as fogueiras, as
cruzadas e tudo isso. E quando olhamos para a história do Islã também.
Dito isso, o que é o monoteísmo? É o que vê a unidade no
mundo. O que é o politeísmo? É o que vê a diversidade no mundo, que vê, como os
antigos gregos, mas também no Candomblé, vocês têm Iemanjá, deusa das águas,
têm os outros, dá pra dizer que são complementares. Uns veem a diversidade e
outros a unidade. Mas, o politeísmo sempre foi mais tolerante do que o
monoteísmo, sempre foi menos dogmático. E, se hoje, o Hinduísmo fica agressivo
contra o Islã é que ele próprio vive uma luta entre duas religiões, mas, em
princípio, as religiões politeístas são mais… Mas, como estou fora dessas
religiões, apenas constato. Acredito que a virtude dos politeístas seja a de
respeitar também a natureza. Quando se tem a Pacha Mama, da tradição andina,
temos o amor da mãe terra. O Cristianismo separou, como aliás o Islã, os dois
tendo a mesma fonte, a Bíblia. Dizem que Deus criou o homem à sua imagem,
diferente da dos animais. Paulo disse que os humanos podem ressuscitar, mas os
animais não.
Criamos a dissociação com a natureza, acentuada pela
civilização ocidental, dizendo que, através da ciência e da tecnologia podemos
dominar e controlar a natureza. Mas, é preciso reencontrar o sentido da
natureza de uma forma não mais politeísta, mas humana, quer dizer, sentir essa
vida, esse sentimento que expressava Spinoza, que a criatividade e a divindade
estão na natureza.
Qual seria, então, na sua opinião, o maior
desafio do ensino escolar hoje no mundo? Fazer esse equilíbrio sociedade
tecnológica e humana, o equilíbrio entre o dinheiro e o saber, entre o
humanismo e a individualidade?
Antes de mais nada, é não se deixar contaminar pela lógica da
empresa. Uma universidade não é uma empresa, é como um hospital, não é uma
empresa. A lógica não é a do lucro, não é a dos benefícios, não é a do
equilíbrio orçamentário, é outra lógica. Depois, não obedecer ao dogma da
avaliação. Avaliamos e avaliamos, quando, na realidade, a avaliação também é um
jeito de calcular que ignora a complexidade das realidades humanas.
O objetivo do ensino deve ser ensinar a viver. Viver não é só
se adaptar ao mundo moderno. Viver quer dizer como, efetivamente, não somente
tratar as grandes questões de que falamos, mas como viver na nossa civilização,
como viver na sociedade de consumo. Produzimos coisas descartáveis em vez de
objetos reparáveis, que possam ser consertados. Então há toda uma lógica e é
preciso dar, no ensino, os meios àqueles que vão se tornar adultos, de poder
escolher alimentos, consumo, não usar o que não é bom e favorecer o que tem
qualidade e o que é artesanal.
Acho que é preciso ensinar não só a utilizar a internet, mas
a conhecer o mundo da internet. É preciso ensinar a saber como é selecionada a
informação na mídia, pois a informação sempre passa por uma seleção – como e
por quê? É preciso ensinar, há todo um ensinamento, para nossa civilização, que
não está pronto. Tem isso e ainda o ensino dos problemas fundamentais e
globais. Essa é a reforma fundamental que precisa ser feita.
Para terminar, professor, o que é que alimenta
suas esperanças num mundo melhor?
A esperança é a ideia que o futuro já que é incerto e já que
é desconhecido, pode justamente ser melhor e, no fundo, meu sentimento profundo
é que eu sou um pedacinho temporário, numa gigantesca aventura, que é a da
humanidade, que começou, talvez, há sete milhões de anos, quando um primata
virou bípede. Que continuou e seguiu pela pré-história, a história, o fim dos
impérios, os acontecimentos, as guerras mundiais. Uma aventura absolutamente
incrível. E como o passado é incrível, eu sei que o futuro também será
incrível.
Mas, sinto que faço parte dessa totalidade, querendo ou não.
Isso também me leva para frente. Não renuncio. Sem querer, sou animado por esse
sentimento de estar na aventura e quero também dar, mesmo que seja pequena, minha
contribuição a isso. É isso que também me encoraja. Não tenho só esperança,
tampouco desespero. Mesmo que saiba que a vida é, ao mesmo tempo, magnífica e
trágica.
Uma das minhas máximas favoritas é: “o que não se regenera,
degenera.” Nada está estabelecido para sempre. Se você tem a democracia, não é
para sempre, pode degenerar. Se acabou com a tortura, não é para sempre, pode
voltar. Quer dizer, é preciso estar com as forças da regeneração e sentir a
necessidade dessas forças de regeneração me tonifica, me faz bem e espero fazer
o bem também.
Fonte: Programa Milênio | Fronteiras do Pensamento