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HIPÓTESES


No decorrer da história, o ser humano foi desenvolvendo cada vez mais seu intelecto. Uma das consequências disso é que hoje ele anseia por compreender as coisas, e não simplesmente observar fenômenos sem conseguir entender por que eles se passam. Também não lhe agrada aceitar leis e regras sociais sem compreender sua razão de ser, ou admitir teorias sem que elas lhe façam sentido, sejam logicamente coerentes e correspondam ao que ele pode observar fora e dentro de si. Parece-me que cada pessoa moderna deveria ter uma concepção consciente do mundo, uma cosmovisão (Weltanschauung); a partir dela, deveria orientar seus pensamentos, sentimentos e ações. Em termos de concepções de mundo, é importante separar o que é hipótese de trabalho e o que é crença; vejamos as características de cada uma, salientando as diferenças entre elas.
Uma hipótese é uma afirmação que é tomada como verdade e serve de base para comprovações experimentais ou para uma teoria. Esta última pode envolver várias hipóteses, e consequências das mesmas sendo, portanto, muito mais ampla. Uma característica fundamental de uma teoria é a sua coerência lógica, isto é, não deve haver contradições entre suas várias hipóteses e entre as afirmações que delas resultam.
Portanto, uma hipótese é a base para alguma compreensão conceitual de observações experimentais, isto é, para a associação mental correta entre uma percepção correta e um conceito correto, ou para a associação mental correta entre conceitos corretos que se relacionam entre si. Note-se a presença da palavra "correto" – vou admitir que existem percepções, conceitos e associações corretos e incorretos. Por exemplo, se o leitor olhar para a entrada da sala em que está e se o seu sistema visual for saudável, certamente terá inicialmente uma percepção correta de impulsos luminosos; em seguida, fará uma representação mental do objeto visto e, finalmente, fará, com o pensamento, uma associação correta com o conceito "porta". Em geral, diz-se que se "vê" uma porta, mas na verdade o que se vê são impulsos luminosos; "porta" é um conceito, uma ideia, e não pode ser visto com os olhos. Chega-se a ele por meio do pensamento, e não de uma percepção sensorial. Um contra-exemplo seria ver-se uma pessoa ao longe, e não se conseguir distinguir se é um homem ou uma mulher. Nesse caso, provavelmente está havendo um erro ou imprecisão na percepção, o que pode ser conscientizado pela dificuldade em associar à representação não nítida correspondente um dentre os dois conceitos possíveis. Um outro contra-exemplo seria ver-se o Sol movendo-se durante o dia no céu, e se fazer a essa percepção correta uma associação mental com o conceito incorreto do movimento dele em volta da Terra, em lugar de se associar a essa percepção o conceito correto de que ele está parado e a Terra está girando em torno de seu eixo.
Uma crença é uma afirmação tomada como verdade, sendo a base para uma visão de mundo que pode não envolver, parcial ou totalmente, uma compreensão conceitual. Uma crença não deve depender de comprovações experimentais. Pelo contrário, ela fecha as portas à compreensão e à investigação.
Uma hipótese deve ser formulada claramente, por meio de conceitos, e basear-se em evidências, seja por meio de observações da realidade, ou de teorias coerentes e abrangentes delas derivadas. Além disso, deve estar sempre sujeita a revisões.
Uma crença não precisa ser formulada com clareza, pois não se dirige ao intelecto; ela é aceita como verdade, e tem um caráter de permanência, isto é, não é sujeita a revisões.
Uma hipótese deve ter um caráter de objetividade, de universalidade e, portanto, não deve basear-se em sentimentos pois estes são sempre subjetivos e individuais.
Ao contrário, uma crença pode envolver conceitos (já que é impossível falar-se sem usar conceitos), mas deve basear-se fundamentalmente em sentimentos, isto é, deve ser essencialmente subjetiva: "sente-se" que uma crença é verdadeira.
A atitude científica é uma das maiores conquistas da humanidade, tendo começado a desenvolver-se efetivamente, como potencialidade para todas as pessoas, após o início do século XV. Antes disso, ela aparecia de maneira parcial em um ou outro indivíduo. Ela deve ser aplicada sempre que se faz uma observação e a descrição de algo, e quando se formulam conceitos. Nessas atividades cognitivas, parece-me que essa é a atitude correta para o ser humano moderno, isto é, uma pessoa que não adota uma atitude científica na parte cognitiva de seu dia-a-dia está retornando indevidamente ao passado. No entanto, é preciso reconhecer que essa atitude não se aplica a toda a vida humana, pois nem tudo nela é cognição, como descreverei depois de expor aquilo que considero suas características fundamentais.
Na cognição, adota-se uma atitude científica se os seguintes requisitos forem satisfeitos:
Ter hipóteses de trabalho, e não ter crenças.
Mantém-se uma curiosidade constante, isto é, procura-se sempre conhecer coisas e ideias novas. Se um fenômeno é observado e não compreendido, deve-se observá-lo de todos os ângulos possíveis e estudá-lo a fim de compreendê-lo. Se uma ideia não é compreendida, ou parecer estranha, deve-se fazer um esforço para estudá-la e compreendê-la.
Essa atitude significa que se deve ter um interesse por quaisquer tipos de fenômenos ou de teorias.
Um contra-exemplo a essa atitude é o fato de muito poucas pessoas saberem por que os aviões sustentam-se no ar, apesar de os verem com frequência. A compreensão desse fenômeno, devido a uma propriedade dos fluidos descoberta em 1738 por Daniel Bernoulli (1700-1782), é relativamente simples e pode ser demonstrada com imensa facilidade: basta assoprar por sobre uma folha de papel fino com a borda superior esticada entre as mãos e encostada abaixo do lábio inferior, e observar como a folha sobe.
Há muito tenho afirmado que a falta dessa curiosidade constante pode ter um efeito indesejável: o desenvolvimento de uma paralisia mental. Segundo Platão, em Menon, Sócrates vai mais longe, pois diz: "Eu disse algumas coisas sobre as quais não tenho total confiança. Mas há algo pelo qual estou pronto a lutar, em palavras e ações, até o máximo de minha capacidade: Nós seremos melhores, mais corajosos e menos impotentes se pensarmos que devemos indagar, do que seríamos se cedêssemos à inútil fantasia [indulge in the idle fancy] de que não é possível, e não há utilidade, em saber o que não sabemos."