Somos capazes de, ao caminhar pelas ruas, desviar sem problema de fezes caninas ou felinas; contudo encontrar fezes humanas é motivo de asco ou distanciamento
Nada do que é
humano me é estranho?
Certa vez,
Laura, filha de Karl Marx, submeteu o grande pensador alemão a uma brincadeira
divertida: responder a uma daquelas entrevistas relâmpagos (tornadas moda nas
revistas e jornais do século seguinte ao deles) que, a pretexto de desnudar a
intimidade de uma personalidade ou de um ídolo, perguntam qual a cor favorita,
o prato favorito, o herói favorito etc. Depois de responder que a cor é a
vermelha, o prato é o peixe e o herói é Spartacus, aparece entre os quesitos
(registrados em um bem preservado manuscrito em idioma inglês) aquele que
indaga pela máxima favorita, e Marx não titubeia: "Nihil humani a me
alienum puto" (Nada do que é humano me é estranho), querendo afirmar sua
convicção na idéia de fraternidade e humanidade coletiva.
Essa resposta
oferecida pelo generoso filósofo expressa, com propriedade, os ideais aos quais
se dedicou sinceramente por toda uma turbulenta existência. No entanto, nos
nossos tempos ego-narcísicos, estamos perdendo as perspectivas de construção de
uma convivência humana irmanada; cada vez mais ganham destaque outros ditados
como: "Cada um por si e Deus por todos", "Cada macaco no seu
galho" ou ainda "Quem pariu Mateus que o embale".
É interessante
observar que a máxima por Marx admirada tem como fonte original a peça "O
Atormentador de Si Mesmo", obra de Terêncio, comediógrafo latino do século
2 a.C., na qual se relata a história, ocorrida em Atenas, de um vizinho
abelhudo que se intromete na vida dos outros sem perceber que coisas piores
estão acontecendo dentro da própria casa dele. Como justificativa para os
contínuos e inoportunos palpites que dava, esse vizinho fala: "Homo sum:
humani nil a me alienum puto", isto é, sou homem e nada do que toca o
homem julgo que me seja alheio.
O sentido da
frase, nessa comédia, é totalmente diverso e muito menos honroso do que aquele
propugnado por Marx, mas, infelizmente, muito mais próximo de nós, nos tempos
atuais. A intenção marxiana é ressaltar o dever de compreender a noção de
humanidade como a prática de uma espécie de "um por todos, todos por
um". Já na acepção original e, agora, contemporânea, é a defesa do direito
à futrica, à fofoca e ao voyeurismo desenfreado que assola um certo tipo de
mídia, altamente rentável, especializada na exposição impressa ou televisiva do
espetáculo proporcionado pelas delícias vividas pelos apaniguados e
supostamente protegidos pelo destino e o inferno cotidiano dos fatalmente
miseráveis e desgraçados.
Nada do que é
humano nos é estranho? Nem sempre, dado que até a maioria dos odores humanos
naturais nos desagrada. Não nos incomodamos em acariciar o dorso suado de um
cavalo ou caminhar em meio aos cheiros que exalam de uma estrebaria ou curral
(alguns proclamam apreciar esses aromas); porém a fragrância do suor humano
incomoda, assim como muitos consideram insuportáveis os fluidos emanados de um
banheiro (limpar banheiro é sinônimo de castigo!). Somos capazes de, ao
caminhar pelas ruas, desviar sem problema de fezes caninas ou felinas; contudo
encontrar fezes humanas é motivo de asco, repugnância ou distanciamento, tal
como quando nos deparamos com mendigos, doentes crônicos, menores abandonados
etc.
É por isso que,
para não poucos, o sonho de paz e vida feliz é poder retirar-se para uma ilha
paradisíaca, distante de tudo e afastada do maior número possível de humanos e
humanas, isto é, isolar-se: ilha, condomínio fechado, alto da montanha, praia
privativa, local inacessível; no máximo, horrorizar-se ou alegrar-se
virtualmente com o que acontece com a humanidade, mas sem chegar muito perto.
Talvez,
parodiando Nietzsche, seja preciso lamentar que, por enquanto, tudo isso seja
humano, demasiado humano...
MARIO
SERGIO CORTELLA é filósofo, professor da PUC-SP e autor de
"A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos"
(ed. Cortêz/IPF), entre outros