18_09

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: RELAÇÕES INSUSPEITAS

 


Impregnado das ideias de progresso  e evolução, características do período  em que viveu, Kardec afirmava que Deus criara o mundo  com dois elementos: espírito  e matéria,  ambos regidos por uma lei natural que os empurrava em direção  ao progresso.  Originalmente simples e ignorantes, os espíritos evoluíam, através de seu esforço e trabalho, no sentido de um aperfeiçoamento.

Seleção  natural e  competitividade  na  evolução   dos  espíritos? Não.  Mas  eles eram,  sim, diferentes.  Podiam  ser “imperfeitos, bons e, no alto da escala, puros”. Os planetas  também  evoluíam, passando de mundos  imperfeitos  a regenerados e bons.  E sua evolução  se integrava  à dos espíritos.  Não  por  acaso,  espiritismo,  evolucionismo  e socialismo utópico  eram ideias que se hidratavam mutuamente. Pierre Leroux, socialista francês, afirmava, por exemplo, que as diversidades sociais eram explicadas  pelo desenvolvimento humano realizado através da existência.  No fundo, a caminhada para  um mundo  mais justo e fraterno estava na ordem do dia aqui ou no além. E os veículos para chegar lá seriam a evolução moral, a educação  e a caridade.

Não  eram  somente  os franceses  que teriam  influenciado os espíritas brasileiros. No mundo  anglo-saxão, muita coisa acontecia com reflexos ao sul do continente. Tal como no Brasil, onde a doutrina floresceu  entre  católicos,  lá ela crescia  entre  protestantes. A Guerra Civil americana funcionou como um rastilho de pólvora: famílias que viam seus filhos partir e que, através  de fotos da imprensa,  constatavam que eles haviam  morrido de forma  atroz, queriam  se comunicar com seus entes queridos.

Na própria Casa Branca, a mulher do então presidente Abraham Lincoln, Mary Abbot,  chorava  o filho falecido  no campo  de batalha em sessões assistidas pelo  marido. Juntou-se  a isso a luta  de socialistas  e cooperativistas ingleses, como  o líder  Robert  Owen,  recentemente  convertido. Nos  primórdios do socialismo, confiava-se num novo princípio de organização social que incluía a regeneração de tipo religioso.  Todos  acreditavam na  evolução  dos  seres humanos e dos sistemas  econômicos  e políticos  rumo  a um mundo  mais justo e melhor. Foi essa a época  das grandes  rebeliões operárias sobre as quais o espiritismo  tinha um efeito moralizante e era apresentado como um antídoto às paixões revolucionárias.

Kardec socialista? Não exatamente. A leitura de Fourier, o grande defensor  do cooperativismo, não  faria  dele um homem  de esquerda. Mas sim alguém profundamente interessado em reformas de educação ou que sugeria, em lugar de tribunais de justiça, instâncias  que “encorajassem  o bem”.  Em ambos  os lados do Atlântico  Norte, o espiritismo se associou  à luta pelo divórcio,  pelo fim da escravidão  e da pena de morte  e pelos direitos  da mulher  – “a  inteligência  não tem sexo”, dizia Kardec.

Depois de proclamada a República, o espiritismo consolidou uma doutrina de caridade  e auxílio  aos pobres,  substituindo a filantropia das elites católicas. Em 1880, no Nordeste, já circulavam  folhas como a Revista  Mensal,  de postura profundamente anticlerical,  enquanto o militar  Manuel  Vianna  de Carvalho, maçom  e espírita,  convocava para  debates  sobre  um socialismo  harmônico e pacífico. No  Sul, em Curitiba, o maçom Dario Vellozo fundou  uma “Igreja Pitagórica”, com mensagens éticas e discursos cosmológicos  pregando uma aliança entre Ocidente  e Oriente  e misturando teosofia, kardecismo e ocultismo. E, no Rio Grande do Sul, nascia o evidentismo, doutrina instituída por um libanês, Abílio de Nequete,  que unia elementos  cristãos,  kardecistas, bolcheviques  e tecnocratas. Muitos  militantes  do movimento operário gaúcho  eram  espíritas. Em São Paulo, o anarquista Edgard Leuenroth juntou-se  ao maçom  Benjamim Mota  para  fundar  a Folha do Povo: “tribuna de livre discussão, para uma investigação sincera da verdade […] eco às aspirações  de nosso tempo”. Já O Livre Pensador, jornal dirigido por Everardo  Dias, maçom, anarquista e espiritualista, se concentrava em defender  o espiritualismo e doutrinas afins. Com o jornal  A Lanterna,  Mota  foi mais fundo  e atacava  sem dó a Igreja Católica, por sua hipocrisia  e exploração da ignorância.

A confissão?  Absurda  e perigosa.  Os jesuítas?  Associados  à Inquisição,  eram  sinônimo  de atraso  máximo.  Só a educação  salvaria, somada à moralidade pública, ao trabalho e à ética de igualdade. Também na capital  paulista, fundavam-se lojas esotéricas  e centros  espiritualistas que mantinham contato com correspondentes estrangeiros para  o  estudo  do  magnetismo, ocultismo,  psiquismo  e espiritismo. Butiques  importavam livros, manuais  e objetos  mágicos,  bem como divulgavam  conhecimentos de astrologia e clarividência.

À medida  que o século XIX estertorava, as escolas de Direito  e Engenharia formavam profissionais  que tinham  para  o país projetos sociais em que não  mais cabia  a influência  da Igreja. Ao defender  a separação oficial entre Estado  e Igreja, a Constituição de 1891 abriu espaço para  ataques  a Roma e à propalada “infalibilidade papal”.

Deu-se um caldo: tanto  o fantástico na literatura quanto as tendências  baseadas no  kardecismo, no  espiritualismo, no  socialismo, no  anarquismo, na  maçonaria, no  racionalismo  e  no  positivismo buscavam  redefinir  o mundo. Procuravam ir em busca  do novo. Ao imaginário “católico”, rural  e monarquista, opunham-se ideias que remetiam  ao urbano, à República, ao futuro  e ao progresso. Combinação de razão e de paixão,  de sonho e realidade, de ciência e crenças, de esperanças  e medos, de maravilhas e técnicas, elas, as novas ideias, hidrataram o novo século junto com a Belle Époque.

Autora: Mary del Priore (baseado em “Do Outro Lado – a História do Sobrenatural e do Espiritismo”).