No Evangelho, Jesus só se enfurece diante dos mercadores da fé, convertidos pela ganância em exploradores da religião alheia
A liderança de uma megaigreja brasileira tem feito uma série de pregações incitando explicitamente o ódio e a violência contra as pessoas LGBTQIA+. A campanha atingiu um auge há duas semanas, quando sua sugestão de que caberia aos cristãos matar LGBTQIA+ resultou nas devidas denúncias e representações por crime de homofobia.
O episódio nos convida a pensar sobre como uma linguagem supostamente “cristã” vem sendo usada para produzir, endossar e perpetuar certas hierarquias e maneiras de controlar e subjugar corpos.
Chamam a atenção as imagens do Deus cristão que são usadas para corroborar tudo isso. Trata-se de um senhor da guerra, um deus da ira, bélico, genocida. Um deus autoritário e esmagador, cujo poder é baseado no medo e na ameaça da destruição. Um deus que não dialoga, aniquila. Um deus com sangue nas mãos, que justifica ódios e violências. Um deus que estabelece normas e regras de comportamento que funcionam como um manual de sobrevivência – que, se for seguido à risca, vai garantir que as pessoas se salvem da ira desse deus tão perigoso.
Essas normas e regras de comportamento nada têm a ver com o Evangelho. Trata-se, ao contrário, de mero moralismo, que incide com rigor sobre os corpos das pessoas, encara o prazer e a alegria com desconfiança e pretende criar corpos delimitados, que devem se apresentar de determinadas formas e agir de maneiras muito específicas – porque os corpos são perigosos e precisam ser enquadrados.
No Evangelho, entretanto, Jesus só se enfurece diante dos mercadores da fé, convertidos pela ganância em exploradores da religião alheia. E por essa razão, por criticar e denunciar as injustiças e atrocidades cometidas pelas autoridades religiosas do seu tempo, Jesus foi entregue para ser torturado e executado pelo Estado.
Não podemos perder de vista que a ética do Evangelho é uma ética de partilha, uma ética de profunda abertura e entrega ao encontro com o outro. Não à toa, Jesus é chamado de “Emanuel”, que significa “Deus Conosco” – um Deus que vem a nós, se encarna num corpo humano e se entrega em alimento para saciar nossa fome e sede de vida. O Deus do Evangelho é Boa Nova porque é um acontecimento amoroso que promete vida em abundância. Um Deus que, ao se encarnar, santifica nossas existências humanas e sacraliza nossos corpos, em toda a sua diversidade, como templos onde adoramos a Deus.
Essa ética da Boa Nova de Amor ilumina e se materializa diariamente em igrejas onde as pessoas se reúnem para partilhar a vida, a fé e o pão, pautadas por uma tradição de serviço à comunidade e cuidado com o próximo.
Já esse deus inimigo de toda diferença, diversidade, dissidência e alteridade, avesso a qualquer diálogo, é feito à imagem e semelhança de um projeto autoritário, totalitário e antipluralista de igreja e de sociedade. Um deus sob medida, portanto, para projetos fascistas de dominação.
A sacralização e canonização desses projetos de sociedade sob a égide de um suposto Cristianismo implica um imenso perigo político. O uso de um discurso aparentemente cristão para delinear, consagrar e eternizar uma visão específica de mundo em detrimento de outras – “é assim, sempre foi assim, sempre será assim, porque essa é a ordem divina, a única ordem possível, porque é o que deus quer” – estreita não apenas nossos horizontes teológicos, mas também nossos horizontes políticos.
E é politicamente crucial que sejamos capazes de imaginar outras representações, outros modos de organização social, outras formas de vida, outras possibilidades de existência, outros mundos possíveis.
Daí a importância das teologias derivadas de experiências de Deus, experiências do divino, experiências de sagrado a partir de corpos diversos; experiências de Deus encarnadas em corpos diversos, especialmente em corpos dissidentes das normas que pretendem restringir e constranger os corpos humanos a uma experiência de sexualidade e de gênero exclusivamente binária e cis-heterossexual.
Daí a importância de pessoas LGBTI+ e cristãs erguermos nossas vozes e afirmarmos que nossos corpos ocupam lugar no espaço no mundo e na igreja. É desde a materialidade dos nossos corpos que dizemos que nós somos e estamos aqui. Sempre estivemos, e ninguém tem autoridade para nos separar da nossa fé, do nosso Cristo, nem da nossa igreja.
Nós nos tornamos, nós nos criamos, sujeitos teológicos, eclesiais e políticos. Nenhuma autoridade terrena tem sobre nós o poder de nos alienar da nossa fé, nem de Deus, nem da nossa experiência de Deus em comunidade, do nosso encontro com Deus nos nossos corpos e nos corpos uns dos outros. Celebramos as nossas vidas e as nossas bem-aventuranças, e as dádivas que vivemos nos nossos corpos e trazemos para nossa gente e para nossas comunidades. Em nós a vida se faz – e Ruah sopra em nós, o Verbo de Deus se faz carne em nós. Nossos corpos são santificados pelo Deus que se fez gente, e somos corpo de Cristo, também nós.
Autora: Cris Serra, Psicóloga, pesquisadora em gênero e religião, membro coordenação da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.