18_12

"PARA ATEU NENHUM BOTAR DEFEITO"


Mesmo quem não tem religião pode se interessar pelo engenho, pela imaginação e pela arte de alguns defensores do cristianismo.Os esforços de um escritor como G. K. Chesterton (1874-1936), por exemplo, não se dirigem tanto para provar “a verdade” de alguns dogmas cristãos —como a virgindade de Maria ou a salvação das almas—, mas o seu “acerto”, do ponto de vista psicológico ou, talvez, humano. É assim que, em “O Homem Eterno” (Ecclesiae, 2014) ele destaca a beleza, e a novidade, que há na ideia de um Deus tomando a forma de um bebê e nascendo de um casal refugiado, escondido numa caverna. Para Chesterton, qualquer ateu que tenha vivido, na infância, a experiência do Natal sempre será sensível a um paradoxo imenso.Irá associar na memória duas coisas absolutamente distintas: a ideia de uma criança indefesa e nua à concepção de uma força desconhecida, capaz de sustentar todas as estrelas. Mesmo perdendo a fé, não perderá o senso obscuro de que há algo de suave e de desprotegido por trás da menção ao nome assustador de Deus. Há algo de incurável nisso, brinca Chesterton. Posso até achar melhor a ideia de um Deus que está em tudo, na eclosão milagrosa e diária das árvores, dos rios, do céu e das pessoas à minha volta. Mas é como se, nesse Deus-Natureza que funciona como uma circunferência infinita, faltasse um centro. E o centro de uma circunferência infinita, diz Chesterton, tem de ser infinitamente pequeno. Com a ideia de um Deus sem-teto, excluído, e até mesmo fora da lei, o cristianismo mudou tudo: “É uma profunda verdade dizer que, desse momento em diante, não era mais possível haver escravos no mundo”. Lembro que também o judaísmo associa a noção de um povo eleito à de um povo escravo, que se liberta. Talvez outras religiões tenham contribuições tão valiosas quanto essa; nenhuma deixou de trazer, igualmente, desastres totalmente evitáveis. Desse ponto de vista, o ateísmo talvez não seja um “nada”, um vazio completo de crença e convicção, mas a depuração, a purificação, a salvação do que há de humano e de bom em qualquer fé religiosa. Com isso, chego ao pensamento de outro autor, que declara convictamente que “Deus não é uma invenção”. Trata-se de René Girard (1923-2015), cuja obra vem sendo traduzida no Brasil pela editora
É Realizações.
O autor de “A Violência e o Sagrado” conhece uma voga crescente em outros países, mas aqui a sua “teoria mimética”, aplicada fartamente na literatura e na antropologia, não parece ter muita divulgação. Da longa bibliografia já disponível em português, leio um livro curto, escrito em colaboração com dois religiosos protestantes, Alain Houziaux e André Gounelle. Estamos longe dos habituais confortos do catecismo. Provar a existência de Deus, diz Alain Houziaux, é quase irreligioso. “Um Deus que podemos provar é um Deus conforme a nossa lógica. Mas, se Deus existe, ele é certamente independente de nossa lógica e não pode ser provado”. Se Deus existe, é “de graça”, sem explicação, simplesmente porque sim —como todo o Universo, aliás. A audácia dessa teologia é enorme, e a meu ver praticamente anula o sentido de qualquer religião. René Girard vai por outro caminho, atribuindo o fenômeno religioso ao que ele chama de “crise mimética”. Ele acredita, sem me convencer, que o ser humano é marcado pelo desejo de ter o que o outro deseja; a rivalidade, a inveja, simplesmente destruiriam toda possibilidade de convívio social se não surgisse, de quando em quando, um “bode expiatório”. Contra esse inimigo imaginário, todos se unem e podem purgar a inimizade que compartilham indiscriminadamente. Pois bem, a novidade do  reside, para Girard, no fato de que Jesus foi ao mesmo tempo um bode expiatório —detestável e objeto de desprezo— e Deus. Sempre se destruiu o bode expiatório; agora é cultuado, enquanto tal. Em outro texto, Girard tira dessa teoria, ou desse mito antropológico, uma conclusão escandalosa. Ao revelar a brutalidade e o erro inerentes a toda religião —sempre, a seu ver, um sacrifício institucionalizado—, o cristianismo foi na verdade o destruidor das religiões. “A morte de Deus é um fenômeno cristão”, diz Girard. “No seu sentido moderno, o ateísmo é uma invenção cristã.” Como ateu, depois dessa, só posso acrescentar que, seja como for, somos todos irmãos.
Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. 
É mestre em sociologia pela USP.

Nenhum comentário: